Dona Glorinha

A senhora do cafezinho carregava nas costas uma tristeza resignada ao espalhar momentos de felicidade pelo escritório de advocacia
Ilustração: Eduardo Mussi
30/05/2025

Às dez da manhã, Dona Glorinha chegava ao nono andar. Muito alinhada, num uniforme azul marinho com gola de renda branca, carregava pelas alças duas garrafas térmicas de café com e sem açúcar e copinhos descartáveis. Para quem preferisse, tinha no bolso alguns copos maiores que enchia de um café forte, quase uma tinta.

Eu ficava atenta à escada de onde ela surgiria a qualquer momento, ansiosa por aquele sossega leão às avessas, salvador das manhãs na minha mini-sala-quase-baia de jovem advogada. Assim que ela despontava no horizonte, eu acompanhava, através das paredes do meu aquário, aquela senhora miúda, de cabelos grisalhos e crespos rentes à cabeça, torcendo para que chegasse logo a minha vez.

Ela espichava a cabeça pela porta entreaberta e em seguida entrava me dando bom-dia. Apoiava as garrafas em cima da mesa e tirava o meu café sem açúcar no copo grande, cheio quase até a boca. Sabia de cor como todos os mais de cem funcionários tomavam os seus cafés: açúcar, adoçante ou puro, dois copinhos pequenos ou um grande como eu.

“Bom dia, Dona Glorinha! Tudo bem?”

“Tudo como Deus quer”, era a resposta dela acompanhada de um sorriso entristecido.

Conversávamos um pouco, às vezes eu pegava “um chorinho” e ela retomava a rota percorrendo os quatro amplos andares do escritório. Ela seguia, mas a resposta à minha pergunta continuava comigo num eco sem fim.

Eu sabia pouco sobre a vida dela. Na hora do almoço ia à igreja e gostava muito desse programa. Morava em Queimados com o filho. Do pai do filho não falava muito. Fazia aniversário em outubro. Dia 12, se não me engano. Uma ou outra coisa que ela deixava escapar de vez em quando. O suficiente para que eu tivesse vontade de abraçá-la todos os dias, às dez e às quatro, quando ela pontualmente entrava na minha sala e me contava tanta coisa apenas com essa frase: “Tudo como Deus quer”. Como se um abraço fosse ser capaz de aplacar a tristeza que ela carregava resignada.

Se eu estivesse distraída, a pergunta automática escapulia, “Tudo bem?”, e a resposta conformada era sempre a mesma: “Tudo como Deus quer”. Às vezes, eu tentava alegrar a nossa conversa, contava alguma novidade, fazia uma graça, checava o que andavam dizendo na rádio corredor.

Se estivesse atenta, evitava a pergunta para não ouvir a resposta. Ela abria a porta e eu dizia algo como: “Dona Glorinha! Que alegria! Tô sonhando com o seu café”. Era verdade e ela ficava toda orgulhosa.

O café não era exatamente gostoso. Me servia mais como muleta do que qualquer outra coisa. Tipo uma cachaça que eu virava quase de uma vez só para aguentar a realidade à minha volta. Era a desculpa para levantar um pouco, esticar as pernas, ir bater papo na sala vizinha. E quando abriu um café transado a dois quarteirões dali e muitos de nós chegávamos carregando nossos expressos duplos para viagem, nunca tive coragem de recusar o café da Dona Glorinha — ainda que muitas vezes acabasse despejando o líquido frio na pia do banheiro para não inundar a lixeira.

Passados mais de quinze anos, volta e meia a imagem daquela senhora miúda me vem à cabeça. A voz rouca, o timbre baixo, suave. O gosto daquele café. Suas pequenas mãos de unhas aparadas e anéis prateados. Será que está viva? Terá se aposentado? Voltou para o Norte? Gostaria de saber. Saber se está tudo bem. Ou se está tudo como Deus quer.

Clarisse Escorel

É escritora, advogada e especialista em Propriedade Intelectual e Direitos Autorais. Estreou na literatura em 2023 com o livro de crônicas Depois da chuva (Ouro sobre Azul). Vive no Rio de Janeiro (RJ).

Rascunho