Às dez da manhã, Dona Glorinha chegava ao nono andar. Muito alinhada, num uniforme azul marinho com gola de renda branca, carregava pelas alças duas garrafas térmicas de café com e sem açúcar e copinhos descartáveis. Para quem preferisse, tinha no bolso alguns copos maiores que enchia de um café forte, quase uma tinta.
Eu ficava atenta à escada de onde ela surgiria a qualquer momento, ansiosa por aquele sossega leão às avessas, salvador das manhãs na minha mini-sala-quase-baia de jovem advogada. Assim que ela despontava no horizonte, eu acompanhava, através das paredes do meu aquário, aquela senhora miúda, de cabelos grisalhos e crespos rentes à cabeça, torcendo para que chegasse logo a minha vez.
Ela espichava a cabeça pela porta entreaberta e em seguida entrava me dando bom-dia. Apoiava as garrafas em cima da mesa e tirava o meu café sem açúcar no copo grande, cheio quase até a boca. Sabia de cor como todos os mais de cem funcionários tomavam os seus cafés: açúcar, adoçante ou puro, dois copinhos pequenos ou um grande como eu.
“Bom dia, Dona Glorinha! Tudo bem?”
“Tudo como Deus quer”, era a resposta dela acompanhada de um sorriso entristecido.
Conversávamos um pouco, às vezes eu pegava “um chorinho” e ela retomava a rota percorrendo os quatro amplos andares do escritório. Ela seguia, mas a resposta à minha pergunta continuava comigo num eco sem fim.
Eu sabia pouco sobre a vida dela. Na hora do almoço ia à igreja e gostava muito desse programa. Morava em Queimados com o filho. Do pai do filho não falava muito. Fazia aniversário em outubro. Dia 12, se não me engano. Uma ou outra coisa que ela deixava escapar de vez em quando. O suficiente para que eu tivesse vontade de abraçá-la todos os dias, às dez e às quatro, quando ela pontualmente entrava na minha sala e me contava tanta coisa apenas com essa frase: “Tudo como Deus quer”. Como se um abraço fosse ser capaz de aplacar a tristeza que ela carregava resignada.
Se eu estivesse distraída, a pergunta automática escapulia, “Tudo bem?”, e a resposta conformada era sempre a mesma: “Tudo como Deus quer”. Às vezes, eu tentava alegrar a nossa conversa, contava alguma novidade, fazia uma graça, checava o que andavam dizendo na rádio corredor.
Se estivesse atenta, evitava a pergunta para não ouvir a resposta. Ela abria a porta e eu dizia algo como: “Dona Glorinha! Que alegria! Tô sonhando com o seu café”. Era verdade e ela ficava toda orgulhosa.
O café não era exatamente gostoso. Me servia mais como muleta do que qualquer outra coisa. Tipo uma cachaça que eu virava quase de uma vez só para aguentar a realidade à minha volta. Era a desculpa para levantar um pouco, esticar as pernas, ir bater papo na sala vizinha. E quando abriu um café transado a dois quarteirões dali e muitos de nós chegávamos carregando nossos expressos duplos para viagem, nunca tive coragem de recusar o café da Dona Glorinha — ainda que muitas vezes acabasse despejando o líquido frio na pia do banheiro para não inundar a lixeira.
Passados mais de quinze anos, volta e meia a imagem daquela senhora miúda me vem à cabeça. A voz rouca, o timbre baixo, suave. O gosto daquele café. Suas pequenas mãos de unhas aparadas e anéis prateados. Será que está viva? Terá se aposentado? Voltou para o Norte? Gostaria de saber. Saber se está tudo bem. Ou se está tudo como Deus quer.