Diamantes

Reflexões familiares em torno da morte, despedida e memórias — com humor, afeto e uma surpreendente conversa sobre virar diamante
Ilustração: Eduardo Mussi
25/07/2025

Outro dia, durante uma conversa, ela me disse sem aviso prévio:

“Eu vou morrer e preciso deixar tudo organizado.”

Minha mãe não está doente e tem boa saúde, mas completou 80 anos em setembro passado e se deu conta de que, um dia, vai morrer.

Foi de 2020 para cá que eu também me dei conta: um dia meus pais vão morrer. Até então, eu não trabalhava com essa hipótese. Agora, toda vez que esse pensamento me cobre, me assusto. Como conceber uma vida sem eles?

Saindo da pizza de domingo, a família toda apertada no carro, minha mãe retoma o assunto:

“Nossa, eu estava com saudade de vocês quatro. Muita saudade. Estamos ficando velhos, eu e o avô de vocês. Eu não sei quem vai morrer primeiro, mas o que morrer por último vai ficar muito triste. Muito mesmo. Vamos precisar que vocês estejam por perto.”

Fez-se um silêncio respeitoso no interior do carro, todos protegidos pela escuridão.

Na manhã seguinte, acordei com minha filha deitada ao meu lado. E, ao olhar para ela — a carinha inchada de sono, o cheiro daquele abraço —, desatei o pranto represado na noite anterior.

Meses depois, fomos, eu e Lucas, buscá-la em algum lugar. Do banco de trás do carro, como de hábito, ela enfileira perguntas:

“Vocês sabiam que as pessoas são enterradas sem os sapatos?”

“Onde ficam os caixões no cemitério? Embaixo da terra ou em gavetas?”

“Em quanto tempo a pessoa vira só osso?”

Do banco da frente, fomos respondendo ao questionário.

“Eu já avisei seu pai e aproveito para registrar aqui: quero ser cremada. Por favor, não me enterrem, tenho claustrofobia”, achei que convinha esclarecer.

“Já avisei sua mãe: quero ser enterrado”, disse o Lucas, só para ser do contra.

“Mãe, assim não vai dar, porque vocês vão ficar separados.”

“Verdade, Lucas. Temos que dar um jeito nisso. Vou convencer seu pai, filha.”

“Dá para transformar as cinzas de vocês em diamante, sabia?”, disse ela.

“Sério?”

“Como assim?”

“Custa caro, mas dá. Li outro dia em algum lugar. Peraí… Achei! ‘Mantenha seu ente querido próximo ao transformá-lo num diamante memorial’, diz aqui. E depois explica tudo direitinho: cor, corte, quilate…”

Diamante memorial.

“O que dá uma certa agonia é não saber se aquela cinza que você leva para casa corresponde exatamente à pessoa querida que morreu. Como saber?”

Os dois me olharam — como ocorre com alguma frequência — como se eu fosse louca de hospício. Não me abalei. Segui convicta:

“Gente, não dá para saber. Não sabemos como é o processo lá dentro. Se cada pessoa é cremada separadamente, o cuidado que se tem com as cinzas e sua identificação. Vai que mistura com outra pessoa?”

Pai e filha, cúmplices, trocavam olhares pelo retrovisor.

Continuei:

“Meu avô guardou as cinzas da minha avó durante anos. Volta e meia eu abria um armário na casa dele e lá estava minha vó, guardadinha. Minha mãe e minhas tias tentaram, algumas vezes, espalhar as cinzas dela na fazenda, debaixo da figueira. Ele nunca autorizou. Demoramos a entender por quê: ele queria ter as cinzas dele misturadas às dela. Minha tia Marina fez isso — polvilhou, com as cinzas dos dois, a terra próxima à jabuticabeira no jardinzinho da casa dela, onde meus avós moraram durante cinquenta anos. No ano seguinte, a jabuticabeira desandou a dar frutos: bacias e bacias de jabuticabas.”

“Tá bem, mãe. Tô olhando aqui e tem várias opções de diamante. Acho que esse menorzinho eu consigo pagar quando for adulta. Temos só que decidir: fazemos dois diamantes ou misturo vocês e faço um só?”

Clarisse Escorel

É escritora, advogada e especialista em Propriedade Intelectual e Direitos Autorais. Estreou na literatura em 2023 com o livro de crônicas Depois da chuva (Ouro sobre Azul). Vive no Rio de Janeiro (RJ).

Rascunho