Cancelada

Entre debates literários, política e maternidade, sobra o medo do cancelamento: melhor calçar os tênis e sair em busca de outro assunto
Ilustração: Bianca Rivetti Burattini
19/09/2025

Depois de ler a entrevista da professora Aurora Bernardini, publicada em 30 de agosto na Ilustríssima, da Folha de S. Paulo, considerei meter a colher no debate forma x conteúdo. Comecei a organizar o pensamento. A crítica ao fato de que o conteúdo tem sido privilegiado em detrimento da forma me parece correta. A meu ver, a forma é vital para a literatura e os temas, correspondam ou não a pautas urgentes, não deveriam se sobrepor à qualidade do texto. Como diz a professora aposentada da USP: “Um fenômeno muito curioso acomete o mundo, mas o Brasil em particular: a literatura se baseia no conteúdo e esquece a forma”. Discordo, no entanto, quando ela afirma que Ferrante, Ernaux, Eco e Itamar não são literatura.

Segui tentando organizar as ideias. Conteúdo versus estilo e linguagem, entretenimento versus arte, boa e má literatura, cheguei a algumas conclusões e voltei atrás sobre dar algum pitaco. Parafraseando Bartleby, achei melhor não. Imaginei tomates e ovos analógicos sendo lançados na minha direção, aquilo que hoje chamamos de cancelamento.

Considerei, então, escrever sobre a condenação do líder da organização criminosa, sobre a precisão do voto do ministro Alexandre de Moraes, sobre o voto constrangedor do ministro divergente, quem sabe aplaudir de pé a ministra Cármen Lúcia, mas Bartleby piscou para mim, avistei ovos e tomates alados transformados em bolsonaristas violentos, sabe-se lá, achei melhor não.

Foi aí que cogitei uma terceira possibilidade: aleitamento materno. Ninguém debate a amamentação com honestidade. Sempre tive vontade de fazer isso. Há anos me pergunto se estou só, isolada em relação a esse tema por ter achado a amamentação, tal como recomendada, uma insanidade. A vida toda só ouvi relatos romantizados sobre livre demanda, amamentação exclusiva, amamentar até dois anos de idade e coisas do tipo. Amamentei meus dois filhos por seis meses por entender que era minha obrigação e porque foi esse o tempo das minhas licenças-maternidade.

Se pudesse voltar no tempo, escolher, se houvesse espaço para uma negociação, não teria embarcado nesse bonde. Duas vezes ao dia, que tal? Manhã e noite. Como é que alguém pode achar razoável que uma mulher amamente de três em três horas durante — no mínimo — seis meses? Tomar banho, comer, escovar os dentes, pentear o cabelo, cuidar dos outros filhos? Não é necessário. Só é preciso ter leite e amamentar. Corpo, sono e vida sequestrados. E ninguém se rebela. Ninguém avisa que vai ser um perrengue, que amamentação não é prova de amor, que tudo bem você dar uma mamadeira, ou melhor, que tudo bem alguém dar uma mamadeira para você olhar para o teto durante meia hora, abrir um livro, dar uma volta. Sem patrulha. De novo vejo ovos e tomates sendo arremessados na minha direção. Daí voltei atrás. Achei melhor não. Cancelamento na certa. Eu contra a Organização Mundial de Saúde, imagina.

Calcei o tênis e saí, em busca de outro assunto.

Clarisse Escorel

É escritora, advogada e especialista em Propriedade Intelectual e Direitos Autorais. Estreou na literatura em 2023 com o livro de crônicas Depois da chuva (Ouro sobre Azul). Vive no Rio de Janeiro (RJ).

Rascunho