Afinidades eletivas

Entre memórias de infância e a luta contra o câncer, a amizade revela sua força como laço escolhido — um elo que resiste ao tempo e à dor
Ilustração: Bruno Schier
05/09/2025

Ela estende a mão e me chama para brincar. Assim nos conhecemos, aos quatro anos, no jardim de infância. Minha amiga parecia uma fada, um ser encantado saído de um livro. Cabelos compridos cor de palha, olhos verde-água enfeitando o rosto redondo. Está presente em quase todos os vestígios da infância e da adolescência: imagens estáticas, cenas curtas, longas sequências de um passado comum.

Muitas vezes é ela a narradora: nós, pequenas, tramando para assistir à novela das oito escondidas; o leite quente antes de dormir que só ela curtia; o meu pânico dos cães fila presos no quintal da casa dela.

Noutras ocasiões quem narra sou eu. No meio de um polícia e ladrão ela começou a chorar e eu fiquei muito assustada. Afinal, ela era forte, craque no queimado e no handebol, amiga dos meninos. Corri para perto achando que ela tinha se machucado. Fomos para um canto, eu aflita, tentando acalmá-la. Sem conseguir falar direito, ela escondeu o rosto de menina com as mãos e disse: “Eu sou adotada, mas não conta para ninguém” e chorou mais um bocado até voltarmos juntas para a brincadeira.

Quase vinte anos depois, quando começaram a dar morfina para o pai dela, ela me ligou contando e ficamos juntas em silêncio. No dia seguinte fomos ao cemitério do Caju, onde cortaram um pedaço da blusa preta que ela vestia e colocamos pedras sobre a lápide. Na nossa história, aquele pai de quase dois metros de altura nos levava a todo e qualquer lugar, a hora que fosse. Carregava uma bolsa tipo capanga, gostava de cachorro, de praia, da filha e das amigas da filha. Ao morrer, levou com ele parte do encanto da nossa juventude.

Em 2014 minha amiga descobriu um câncer de mama. Passou por uma cirurgia, por sessões de rádio e quimioterapia, perdeu todo o cabelo cor de palha e continuou linda. Os olhos verde-água iluminando o rosto. Em 2023 descobriu que o então marido tinha uma “relação paralela” desde a época em que ela esteve doente. Nos primeiros dias de 2025 descobriu um novo tumor. Submeteu-se a uma nova cirurgia em abril e a um novo tratamento que acaba de terminar.

Fui acompanhá-la na primeira sessão de quimioterapia. Quando cheguei ao quarto, ela já estava deitada, soro e medicação espetados na veia, uma touca gelada comprimindo o crânio para reduzir a queda do cabelo. Passamos quatro horas emendando um assunto no outro. Minha amiga não reclamou de nada. Em nenhum momento. De vez em quando fechava os olhos e cochilava. Em seguida, despertava e, ainda com os olhos fechados, puxava papo, achando graça nas muitas histórias que ela própria contava. Comeu com prazer o lanche hospitalar, com destaque para o pastel de forno que pediu para repetir. Sorriu para os oito ou mais funcionários da enfermagem que entraram no quarto alternadamente para dar as mais variadas instruções e para quem eu quase pedi que deixassem minha amiga quieta e nos passassem todas as recomendações por escrito ao fim da sessão.

Na manhã seguinte minha amiga mandou um áudio fazendo piada com o cabelo imundo que só poderia ser lavado uma semana depois. De acordo com ela, dava para fritar um ovo na cabeça, o que nem seria má ideia porque assim ela não precisaria lavar a frigideira. Contou ainda, se divertindo genuinamente com a situação, que acordou de madrugada para ir ao banheiro e levou um susto com uma luz verde piscando no escuro. A quimioterapia podia estar afetando a visão ou provocando alucinações, cogitou, até se dar conta de que a luz vinha de um dispositivo fixado a um dos seus braços para injetar uma medicação.

De vez em quando ela chora. Como no dia do polícia e ladrão da nossa infância. Manda áudios-podcasts de estraçalhar o coração. Enquanto eu me recupero depois de ouvi-la, chega uma foto dela fazendo exercício. Daí entra outro áudio com ela contando que foi a um aniversário bem servido de rapazes e rolou uma azaração, concluindo que, se o negócio tá animado desse jeito sem cabelo, imagina quando estiver com a juba de volta. E daí comenta que resolveu trocar de quarto para mudar de ares e que agora dorme olhando para o céu estrelado pelo Starfix que a filha deixou no teto.

Minha amiga de astral carnavalesco tem a força de uma gladiadora. Eu já sabia que amigas são como irmãs que a gente escolhe, mas só recentemente entendi: elas não aparecem na vida da gente por acaso.

Clarisse Escorel

É escritora, advogada e especialista em Propriedade Intelectual e Direitos Autorais. Estreou na literatura em 2023 com o livro de crônicas Depois da chuva (Ouro sobre Azul). Vive no Rio de Janeiro (RJ).

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