O PNLD Literário e a censura

Quando a censura ganha repercussão, passamos a discuti-la e isso parece mais um sintoma da nossa apatia política do que uma prática organizada de contestação e resistência
Ilustração: FP Rodrigues
08/03/2024

Recentemente fomos “surpreendidas” pela censura feita por operadoras da educação no interior do Rio Grande do Sul e em Curitiba a um livro de literatura selecionado pelo PNLD Literário (Programa Nacional do Livro e do Material Didático), componente do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação). Trata-se de uma política pública de formação de acervo nas escolas públicas brasileiras, um dos maiores programas de distribuição de livros didáticos e de literatura do mundo.

A prática de censura não é surpreendente, de fato, porque ela tem nos acompanhado de maneira mais discreta em alguns momentos e insidiosa em outros, desde que Jair Messias Bolsonaro foi eleito presidente, e mesmo antes, no governo do usurpador Michel Temer. Quando a censura ganha holofotes e caixas de som nas mídias digitais, passamos a discuti-la e isso parece se configurar mais como um sintoma da nossa apatia política do que como prática organizada de contestação e resistência. Assim, escorregamos na casca de banana da novidade nos noticiários e sua avidez por coisas de potencial inflamável.

Não é objetivo desta crônica discutir o arcabouço de práticas de censura do governo Bolsonaro, tampouco os pequenos poderes de bolsonaristas incrustados (e protegidos) nos subterrâneos de órgãos da administração pública de cidades e estados, cujos governantes, câmaras municipais e assembleias legislativas são coniventes com práticas antidemocráticas, autoritárias, racistas, machistas, LGBTfóbicas, etc. Quero apenas trazer algumas informações sobre o processo de seleção de livros no PNLD Literário.

Inscrever um livro no PNLD Literário implica uma tarefa complexa. Primeiro é preciso vencer uma disputa no interior das próprias editoras, porque existem muitos títulos bons a cada ano e o edital limita o número de obras a inscrever. Feita a escolha, é necessário elaborar um imenso e detalhado material de apoio, que inclui vídeos, manual do professor, versões para pessoas cegas ou com baixa visão e versões em audiovisual, ou seja, uma vasta configuração de suporte técnico-didático que será escrutinada por um pequeno exército de avaliadoras e avaliadores, recrutados nas melhores universidades brasileiras.

Caso os livros inscritos sejam aprovados, passam a compor uma lista de livre escolha a ser enviada a todas as escolas brasileiras inscritas no FNDE. As escolas definirão internamente como escolherão os livros. Nesse processo, vemos de tudo: escolas que perdem o prazo de escolha; escolas que têm processos intensos e participativos de discussão no corpo docente; escolas que deixam a escolha nas mãos de um pequeno grupo de docentes ou mesmo de um indivíduo. O resultado final é encaminhado pela diretora ou diretor da escola, utilizando sua matrícula e CPF.

Quando a gestão pública é conduzida por critérios ideológicos e autoritários e não por pressupostos republicanos aplicados por servidores que heroicamente zelam pela coisa pública, em qualquer etapa do processo pode haver ingerências que deturpem os resultados ou excluam livros. Isso aconteceu, por exemplo, com o meu livro Um Exu em Nova York, que mesmo tendo sido aprovado em todas as etapas do PNLD Literário 2021, não entrou na lista de obras disponíveis para o processo seletivo nas escolas. À época, a editora Pallas com o meu apoio, optou por não judicializar a questão e tentou reverter o desaparecimento do título nos canais internos da instituição promotora do certame, contudo, era um tempo de trevas e o livro foi mesmo desaparecido do leque de opções.

Cidinha da Silva

É escritora e doutora em Difusão do Conhecimento. Publicou 21 livros, dentre eles, os premiados Um Exu em Nova York e O mar de Manu.

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