Mas em que mundo tu vive?

As muitas dificuldades de ser uma autora negra no Brasil e o fetiche de ser dona do próprio tempo para escrever
Ilustração: FP Rodrigues
02/08/2024

O mundo em que vivo é bruto, mas insisto em descobrir flores no asfalto e em plantar outras. Neste, quando sou curadora e posso sugerir doze pessoas para um trabalho, tenho uma lista de duas dezenas que poderiam ocupar bem cada um daqueles doze lugares.

No mundo em que vivo dou cerca de dez autógrafos num evento de lançamento do meu vigésimo segundo livro, mas em cada palestra ou bate-papo que protagonizo, uma dezena de escritoras iniciantes quer a fórmula para se transformar no que consideram “uma escritora de sucesso”.

No mundo em que vivo, os cachês são hierarquizados e os curadores acreditam que me convencerão da minha importância ao me pagar menos do que pagam a outros colegas para exercerem a mesma função (três, quatro, cinco vezes), até para estar na mesma mesa.

No mundo em que vivo, se trabalho, recebo, se tenho algum problema de saúde no aeroporto, enquanto me desloco para o local, não sou remunerada. Saibam que nunca mais aparecerei nesse lugar, nem me chamem.

No mundo em que vivo, tenho consciência de que em concursos literários, mulheres, pessoas negras, indígenas, pessoas trans, não-binárias, sexual-dissidentes, e as histórias que escrevem a partir de seus pertencimentos, terão alguma chance de prêmio se forem avaliadas por perfis não hegemônicos.

No mundo em que vivo, a maioria das escritoras e escritores negros, à exceção de Ana Maria Gonçalves, Edimilson de Almeida Pereira, Leda Maria Martins, Nei Lopes, Grace Passô, Paulo Lins, Ricardo Aleixo, Conceição Evaristo, Itamar Vieira Júnior e Jeferson Tenório, entre outros poucos, ocupamos os lugares designados para cumprir a cota negra, para ocupar o espaço da representatividade étnica. No mundo em que vivo, exercito todos os dias a transformação disso em limonada.

Por fim, parafraseando a sabedoria da amiga Monique Malcher, no mundo em que vivo, meu fetiche é ser bem remunerada pelo meu trabalho, para assim me tornar dona do meu tempo e conquistar tempo livre (e financiado) para escrever.

Cidinha da Silva

É escritora e doutora em Difusão do Conhecimento. Publicou 21 livros, dentre eles, os premiados Um Exu em Nova York e O mar de Manu.

Rascunho