Ela me largou

Na feira, um homem já idoso conta uma triste história de abandono, dor e solidão
Ilustração: Eduardo Mussi
22/03/2024

Dia de feira. Feita a pesquisa simbólica de preços, compraria nas bancas costumeiras. Escolhi as raríssimas que tinham mulheres negras trabalhando, depois as de homens negros que não faziam coro aos gracejos sexistas da maioria dos homens, depois as de mulheres não-negras, entre estas, uma ou outra proprietária.

Comprei maçãs, peras, mamão e abacate das mãos da jovem negra que usa aparelho nos dentes; mangas, melancia e abacaxi do jovem negro, cujas frutas não têm o aspecto externo mais lustroso, mas são sadias por dentro. Cebolinha, salsa e alho-poró comprei da senhora afro-indígena que vende tudo mais caro, quando pechinchei, ouvi suas explicações ríspidas sobre o trabalho de plantar, colher e transportar sem ter carro. Gosto de sua convicção, do valor que aplica ao próprio trabalho. Comprei bananas na barraca da mulher branca que chama todo mundo de “bença”, variando para “abençoado” quando quer ser irônica. Ela se mostra curiosa porque prefiro comprar os produtos dela, em detrimento das várias barracas de homens que se esgoelam ao seu redor. Os peixes comprei na barraca do homem oriental que tem duas funcionárias e um funcionário negros. Sua esposa, também oriental, quando começa a me dar atenção, diz que gosto de ser atendida pela outra (a negra) e a chama, e eu gosto mesmo, principalmente porque ela aguarda que eu decida e não fica tentando me empurrar peles de peixe e sobras diversas, tampouco os pescados mais baratos que a patroa julga estarem ao alcance do meu bolso. Para finalizar, passei pelo açougue, no qual trabalham uns oito homens e uma mulher que trata as carnes destinadas às entregas domiciliares. Ela observa o trabalho dos rapazes que abordam as mulheres sem tom de paquera e sem insinuações sexuais. Parecem bem treinados.

Quando cheguei à banca de ovos do casal de idosos, pedi minha dúzia e meia de ovos caipira e o dono da granja, me disse detrás do bigodão eslovaco que por pouco eu não os encontraria mais. Veio uma outra freguesa e queria uma dúzia, ele explicou que acabara de vender os últimos. “Para ela?” A mulher perguntou sem me olhar. “Sim” foi a resposta seca do vendedor. A dita então saiu-se com essa: “O senhor está embalando 18 ovos, dá seis para ela e 12 para mim”. Olhei para o lado oposto ao rosto dela e devo ter balbuciado algum impropério, mirei a cara constrangida do senhor que não sei o nome e perguntei: “Não tenho visto sua esposa, ela não tem vindo?”. Sem desviar a atenção do barbante que finalizava a embalagem, ele disse num misto de surpresa pela pergunta e tristeza pela resposta forçosa: “Ela me largou!”. Eu soltei um “oxe!”; enquanto meu cérebro rebobinava, pensei que por detrás daquela cara de homem simples do leste europeu devia esconder-se um cretino de marca maior, porque o que levaria uma senhora de mais de setenta anos a romper com um homem com quem deve ter sido casada a vida inteira? Boa bisca ele não era. Deve ter aprontado alguma que feriu demais a dignidade dela e a forçou a ir embora.

Enquanto pegava o cartão para pagar, me lembrei de um dia em que ele estava sozinho, há uns três meses, e lhe ofereci o cartão. Estranhamente, ele me deu a máquina para que eu digitasse o valor. Era sempre a senhora quem cuidava dessa parte e me pareceu que ele não sabia como fazer. Seus olhos estavam vazios e muito tristes. Será que ele era um bom homem e ela simplesmente achou coisa mais instigante para fazer na vida e resolveu arriscar-se fora do casamento?

“Senti falta da sua esposa e pensei que ela pudesse estar doente”, confidenciei a ele, dando-lhe o beneplácito da dúvida. “Não estava doente, ela estava bem, não sentia nada. De manhã arrumamos os ovos tudo, colocamos na perua. De tarde nós tomamos café com bolo que eu comprei na padaria, ela assistiu à novela dela e eu fui consertar o telhado da casa do cachorro. De noite, puf! Ela foi embora. Foi socorrida, mas não deu tempo.”

“Ah… o senhor está dizendo que ela morreu? Me desculpe, eu não tinha entendido isso.” “Pois é, ela me largou. Enfartou, não avisou nada. De manhã estava bem e à noite se picou. Levou meu braço esquerdo, o direito, minha cabeça e me deixou aqui, nesse mundo velho de meu Deus.”

Cidinha da Silva

É escritora e doutora em Difusão do Conhecimento. Publicou 21 livros, dentre eles, os premiados Um Exu em Nova York e O mar de Manu.

Rascunho