Ebó de boca

As forças ancestrais e as técnicas narrativas como pilares para a construção de uma obra poética e contestadora
Ilustração: Tereza Yamashita
19/07/2024

Tenho acompanhado com muito interesse a mudança de Xande de Pilares, de músico respeitado a pop star, que continua gozando de respeitabilidade, por certo. A pedra de toque é o disco Xande canta Caetano, quando ele relê sucessos de Caetano Veloso. Este, depois de seis décadas de música e de intervenção transformadora na cultura brasileira, segue debutando num universo de sofisticação que não é alcançado por todos. Talvez, ainda não componha o repertório cantado pelo povo, mesmo tendo sido trilha de novelas.

As novelas são importantes na construção de meu argumento, pois, em entrevistas, Xande declarou ter conhecido Caetano ao assisti-las, ainda menino, e ali, a música do mestre o fascinou. Muitos garotos de sua geração e de mesma origem geo-política-afetiva suburbana e de favela, futuros músicos, também ouviram a mesma canção pela televisão, mas, ao coração de Xande, ela tocou de maneira especial e ele a abrigou dentro de si, e foi fazendo com ela uma compostagem ao longo da vida, até devolvê-la como terra adubada a pessoas e mundos que talvez Caetano não alcançasse além da trilha da novela. A música pode ter se eternizado em corações e mentes como efeito da cultura de massa, mas sem provocar um mergulho na obra do ícone da Tropicália, como aconteceu com Xande de Pilares.

Nós, que temos a mesma origem de Xande de todos os lugares do Rio, e escolhemos ser artistas, despendemos muito tempo para compreender e aceitar o que nos forma intelectual e artisticamente, como algo efetivo e valioso. Nós, que não nascemos em berço de livros, que não herdamos bibliotecas dos pais, avós, ou de gerações ainda mais distantes, que não lemos os clássicos da literatura mundial na adolescência (descobertos, encontrados e acessados tardiamente), que líamos os livros disponíveis nas bibliotecas públicas e escolares, ou nas bibliotecas comunitárias que nós mesmos construímos; nós que fomos os primeiros a apresentar a universidade para nossas famílias, experimentamos uma construção de agência gestada pelas faltas, pelo pouco, pelo residual, mas isso também tem valor.

A escolarização pública e gratuita é agente de formação intelectual e humana fundamental para quem pertence às classes populares, haja vista que, para a maioria da população brasileira, o ensino fundamental constitui um momento privilegiado de acesso aos bens culturais da humanidade. Há pessoas cuja prática de leitura ao longo da vida se restringirá àqueles livros indicados pela área de português e acessíveis na sala de leitura da escola.

Eu fui das pessoas para quem o ensino básico, cursado em escolas públicas, descortinou um universo de possibilidades. Meu desejo de escrever nasceu na escola. Ao ler na biblioteca escolar as crônicas de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Drummond, que conheci cronista, antes de alcançá-lo poeta, tive vontade de escrever minhas próprias histórias. Nas provas bimestrais de português fui apresentada ao cancioneiro brasileiro que, embora eu ouvisse no rádio, junto com minha mãe, não parava para pensar sobre as letras, isso aprendi com dona Irenice, professora de português. Lembro-me vivamente de Triste partida, de Luiz Gonzaga e Patativa do Assaré, um retrato da migração nordeste-São Paulo até os anos 1970, premida pela seca que terminava no vaticínio “nós vamos a São Paulo, viver ou morrer”. É pujante também a primeira recordação de Travessia, de Milton Nascimento, que se tornou a canção da minha vida. Houve ainda uma novela na infância, cujo nome não me lembro, na qual um personagem escritor me comovia.

Durante a graduação tive uma professora de filosofia que me disse: “seus caminhos são turvos, mas você chega”. Tomei aquilo como elogio por duas décadas, simplesmente porque ela prestou atenção ao meu pensamento e o categorizou, a mim que pertenço a um grupo socio-racial, ao qual o mundo racista exige provas incessantes de raciocínio lógico, de sermos capazes de pensar. À volta dos 50 anos, entretanto, compreendi por meio da leitura e da convivência com o legado intelectual de Leda Maria Martins, que meu pensamento não é turvo, ele é espiralar, ele acontece num tempo espiralar. Um tempo de composições, em que as ideias vão e voltam, fazem curvas, dançam, brincam com as sonoridades do tamborilar interior que ancora o meu estar no mundo. Entendi, então, que escrever é dançar no tempo e com o Tempo.

Minha palavra é exúnica, é regida por Exu, orixá da comunicação e das movências, dos diálogos entre o mundo visível e os invisíveis. Minha palavra não conta a minha história (apenas), ela dá vida a outras histórias, ela inventa, cria, desenha caminhos e modela mundos, a partir das compostagens dentro de mim.

Minha escrita é feita de trânsitos, iniciando-se pela travessia daqueles que conseguiram sobreviver à Kalunga Grande. É feita de água, do líquido amniótico atlântico que nos formou, no qual estão submersas incontáveis ossadas que gemem, sem encontrar paz. Minha palavra navega por essas águas ruidosas, tumultuadas, insurgentes, furiosas, povoadas pela minha ancestralidade que submergiu e pela que sobreviveu ao tráfico atlântico. Águas das orixalidades que nos apaziguaram, das africanidades que recriamos em luta nas terras de Pindorama.

Quando escrevo, conclamo essas forças e alio o trabalho de construção de linguagem e técnica de composição da prosa para modelar, sob o hálito da palavra, minha poética e os imaginários políticos novos que oferendo a quem me lê. Me valho também da tensão e do diálogo entre tradições e contemporaneidade para dar liga à minha palavra. Converso com as tradições africanas, afro-brasileiras, afro-indígenas e afro-diaspóricas. Por isso dei o título de Um Exu em Nova York, ao meu livro mais conhecido pelo público.

Minha literatura é um caminho de encruzilhadas (episteme evocada por Leda Maria Martins), de viagens, de exuzilhamentos entre os mundos visíveis e invisíveis, entre os mundos que habito e os que me habitam. É, portanto, uma literatura regida por Exu. É ebó de boca, o que faço quando escrevo e exerço a liberdade criativa, como potencialidade humana inegociável.

Escrever, para mim, é materializar o momento da chegada de Xangô ao xirê. Alegria, alegria! O Rei chegou! Eu não sofro ao escrever, é trabalhoso, mas sinto muita alegria. Agora, por exemplo, experimento a sensação gostosa de finalizar este texto considerando a possibilidade de que minha referência poética da vida, o amado Gilberto Gil, o leia. Ôh sorte! Escrever literatura não poderia me conceder alegria mais vigorosa.

Cidinha da Silva

É escritora e doutora em Difusão do Conhecimento. Publicou 21 livros, dentre eles, os premiados Um Exu em Nova York e O mar de Manu.

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