Conheci Denise Assunção na cena underground do Bixiga dos anos 90, dos shows no Café Piu Piu, dos ensaios da Vai Vai, do Oriasé na Santo Antônio, dos papos sem fim no Orilê, salão afro da Penha, instalado num bequinho da mesma rua, nas caminhadas pelas madrugadas no quilombo da Saracura.
Aliás, quando forem escrever biografias sobre a Denise Assunção, tratem de entrevistar a Penha, cabeleireira afro do velho Bixiga, com quem a Denise abria o coração sobre questões que, provavelmente, não compartilhava com as amizades brancas. Sim, várias dessas pessoas acolhiam sua genialidade, devem ter dado força para que ela conseguisse trabalhos e não sucumbisse à dor dos limites impostos a uma mulher negra que não se curva, mas, de certo, não alcançavam a ação destruidora do racismo sobre uma artista genial como ela. Coisa que nós, gente negra alvo do racismo, compreendemos numa troca de olhar. Esse país dói muito porque nos aniquila, a todas nós que não nos comportamos como o esperado e recusamos as caixas de contenção.
Volta e meia a Penha comentava que a Denise passara por lá e tinha contado uma história, outra história, reclamara disso ou daquilo, de um perrengue e de outro, de outro. Aquela luta insana para manter uma vida digna sendo artista preta, completamente fora dos padrões. Eu a vi algumas vezes, nas ruas e nos palcos, a última delas em Pretoperitamar, que precisei assistir duas vezes. Nas ruas, nunca abordei, para mim, ela era meio super-heroína e, como tal, eu a colocava em um lugar de diva e a reverenciava de longe. Aquela expressividade toda me inibia, a mim, tão careta, tão certinha, e Denise, toda exuberância. No meu imaginário ela era Blade Runner, Grace Jones, indomável, indestrutível e feroz.
A ferocidade devia ser um erro meu de percepção, pois o Kiko Dinucci contou uma história muito doce da Denise que, num show do irmão Itamar Assumpção, ao ar livre, desceu do palco com o microfone, cantou e conversou com um grupo de bêbados, convencendo-os a deixar de atrapalhar o espetáculo. Pessoas que leram essa nota do Kiko fizeram coro, acrescentando outros depoimentos comprobatórios de sua doçura. À época não consegui perceber essa característica, meus punhos cerrados só viam os punhos cerrados da arte dela. Arte que emprestou brilho e sagacidade ao trabalho de Antunes Filho, Zé Celso, Victor Nóvoa, Itamar Assumpção, além dos trabalhos solo.
Lena Roque, também atriz negra insurgente, combatente, persistente na invenção cotidiana da arte e na autoprodução para garantir condições dignas de trabalho para si e para as parcerias, fez as perguntas incontornáveis: “E se Denise fosse midiática? Seria reverenciada? E se fosse possível ter domado-enquadrado-formatado Denise? Haveria mil e um ‘posts chorando’ sua partida? E se Denise tivesse sido premiada, bajulada, cortejada? Seria sua passagem lamentada em rede nacional? E se fosse rica? E se não fosse ‘fora da curva’? E se não fosse ‘endoidecida’? Endoidecidos milionários internacionais são ‘excêntricos’, né? E se tivesse tido filhos, propriedades, espólios, pensão, herança? E se não fosse preta, em uma época que preto não tava na moda? E se fosse possível SER uma preta-louca-genial-acima da média-iluminada em um país-mundo que SÓ sabe lidar com o óbvio-prosaico-medíocre?”.
Tento me acalentar imaginando que quem está no mundo para fazer história não se importa muito com holofotes e purpurina (embora façam bem à alma), entretanto, viver dignamente dos recursos econômicos advindos do próprio trabalho é imperativo para que a gente não definhe. Este é o reconhecimento de que não se pode abrir mão.
Grace Passô, pedra preciosa da cultura brasileira, plantada nesse mundo pelo asé de Xangô, emanou, do seu lugar de autoridade, que no dia 4 de janeiro de 2024, encantou-se Denise Assunção, a atriz de atuações mais brilhantes vistas por ela no teatro.
Olorun Kosi Purê, Denise Assunção! Que os ancestrais te recebam com amor e alegria.
Nós honraremos seu nome por aqui.