Zeca

Zeca, o filhote invasor, desafia os domínios de Nina Simone e expõe, entre travessuras e ironias, a diplomacia possível entre cães e humanos
Ilustração: Bianca Rivetti Burattini
02/10/2025

Consigo, da minha sala, ouvir a sala da vizinha. A família que mora parede com parede comigo dorme cedo, então não é algo que verdadeiramente me incomode.

Semana passada, entretanto, foram muitos gritos. O mais frequente foi: “Zeca, não!”. Depois de ouvir “Zeca, desce já daí!”, comecei a suspeitar de que o Zeca poderia ser alguém que eu gostaria de conhecer.

Dito e feito.

Zeca é um filhote canino viralatíssimo, cinza e branco, de uns 30 cm de comprimento, incluindo o rabo.

Na primeira interação, Zeca entrou nos domínios de Nina Simone como se nada houvera. Cheirou a dona da casa. Mordeu uma bola que obviamente não lhe pertencia. Passou por cima da caminha da sala (existem várias pela casa). Virou, com o focinho, uma das almofadas. Bebeu água. Ganhou um petisco, que engoliu de uma vez só, como se tivesse tamanho para isso. Cheirou o lixo. Entrou embaixo da mesa. Entrou embaixo do sofá. Entrou embaixo da cama. Entrou embaixo de uma poltrona. Correu pela cozinha. Lambeu a Nina. E foi embora. Pobre da cantora de jazz, que está tonta até agora.

Existe uma lenda urbana sobre algo de instintivo na maioria dos animais que faz com que não ataquem filhotes. Maioria. Humanos excluídos. Não sei se é fato ou não, mas a Nina realmente não trucidou o desinformado que mordeu sua bola — na sua casa, no seu território, bola que estava na sua caixinha de brinquedos. Desaforo.

A zeladora dos domínios do Zeca, gentil, chama Nina para conhecer a casa e retribuir a invasã… digo, o favor. Seguro a fera em pânico. Eu em pânico. Nina estava de boas. Conheço muito bem a sua capacidade bélica contra sofás de um modo geral, e eu não estou podendo arcar com esse prejuízo. Em um assunto não relacionado: alguém conhece um estofador bom e barato em São Paulo?

Nessa semana, os humanos ao lado aprenderam dois novos verbos: soltar e largar. “Zeca, solta!” “Zeca, larga!”. É sempre importante acompanhar esses nobres processos de alfabetização.

Nina acha que, semana que vem, tentarão conjugar o verbo sentar. Ela também acha que serão palavras ao vento. Nina é da opinião de que esse processo é ilusório e de que divas do jazz fazem apenas o que querem. Existem evidências de que ela tenha razão.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho