Já não sei mais o que é um outro burnout a caminho, só cansaço ou a minha distração crônica. A crônica, a literária, esta aqui, não a medida de frequência, faltou semana passada porque consegui queimar os cinco dedos da mão esquerda e ficou impossível digitar. Foi assim. Chego em casa com fome. Hm, tenho um pãozinho. Coloco o pãozinho no forno. Esquenta. Desligo o forno. Coloco a luva térmica na mão direita, pois sou destra. Então abro o forno com a mão direita, pois sou destra. E pego a assadeira com a esquerda. A única coisa que aliviava um pouco a dor era colocar a mão em um pote com água gelada. Assim o fiz e fui caminhando para o hospital mais próximo. No caminho, um bêbado me pergunta se eu tinha pipoca. Sigo. Queimaduras de primeiro e segundo graus. Burrice mata, minha gente.
Culpo minha mãe, o único ser humano que conheci que era mais distraído (e mais desafinado) do que eu. Pensando bem, ainda tenho tempo de atingir o patamar dela. Ela faria aniversário domingo agora, dia 29. Sempre tem alguém que lembra e posta uma foto dela em redes sociais. Eu tomo cada susto.
Ainda com os dedos cheios de curativos, assisti Yamandu Costa ao vivo. Um deus ao violão. Não, mentira. Deuses estão preocupados com doenças, guerras, eleições, cadeiras, queimadas e o clima. Não têm tempo para tocar violão tão bem. Por aproximadamente uma hora, esqueci da dor, dos prazos, do cansaço, do estresse, das dívidas e ouvi e vi o que sete cordas são capazes de fazer quando em contato com o divino.
É para isso que serve a arte, a literatura e a música: para nos fornecer uma pausa de nós mesmos.
Yamandu é uma das minhas pausas ideais.
Sempre que alguém falar em ideal com vocês, liguem o alerta vermelho.
Não existe um único texto de Platão sobre a arte propriamente dita. Ele se preocupa apenas com a prática/técnica ou a ideia/belo. Em outras palavras, a arte não é arte como um todo. É algo que a tangencia e/ou a compõe. O Platão é o cara que vai falar de O Belo, O Justo e O Bem, também conhecida como a “tríade platônica”. Muita água correu debaixo dessa ponte, mas até hoje algumas pessoas entendem que por ser belo, é “do bem”, ou, que para ser justo, precisa estar dentro do padrão vigente de beleza. Isso é uma desgraça. É esse tipo de asneira sobre um ideal que vai permitir que teorias como a de Cesare Lombroso vejam a luz do dia. Muito do pensamento da extrema direita racista surge daí.
Então, eu comparo o violão de Yamandu com o meu ideal musical com muita cautela. Não gosto de ideais. Gosto de ideias. Muita atenção onde colocamos esse i.
A ênfase aqui é na significação individual. O autor precisa morrer. Oi, Barthes querido, saudades.
Nina Simone me olha estranho. Quer passear. Ela não liga para nada disso e não ouve o que toca no meu fone de ouvido. Nina prefere o som dos pássaros, das árvores e os cheiros do caminho.
Então, compreendendo que falo não de maneira totalitária, mas em um relato de um prazer pessoal, íntimo e intransferível, para mim existem duas divindades que tocam violão. Yamandu Costa e Paco de Lucía. Os demais são anjos, sacerdotes, clero, qualquer outra coisa menor.
Saí do espetáculo sem dor e com os olhos marejados.
Era disso que Kant falava.
E então vamos, Nina e eu, sentir os cheiros do parque.