Vinte quilos de argamassa

A decisão de voltar a fotografar, os machistas pelo caminho e a reforma da casa com gastos assombrosos
Ilustração: FP Rodrigues
05/10/2023

Em mais um dos meus inúmeros atos de insanidade, decido voltar à fotografia. Parei uns anos atrás. Em grande parte, pela dificuldade em fotografar com filme e por não gostar das máquinas digitais. Muito submenu e clique para pouca ação. Ações que deveriam ser simples.

A gente supera até mesmo isso e então lá vou eu de novo.

Apesar da parte reptiliana do meu cérebro que se lembra do Walter Benjamin, gosto de tecnologia.

Falando muito além da imagem clicada, às vezes é um esforço silenciar o réptil dentro de mim.

Os tempos mudaram e acho que vou abrir um insta só pra fotografia. Sim, eu sei, contrariando absolutamente tudo o que eu disse até hoje.

A vida é assim, desapega. Quem faz sentido é soldado.

Como se isso não fosse caótico o suficiente, estou em obras.

Vocês têm ideia de quanto custa uma janela? Juro que não achei que eu fosse tão pobre assim. Me transformei na louca da conta. Antes de sair com amigos, penso em quantos sacos de cimento essa pizza custa.

Um chuveiro equivale a uma diária em um hotel fazenda. Uma janela antirruído vale o mesmo que duas viagens a Paris. O kit na promoção com três ventiladores de teto foi o que eu gastaria para passar um final de semana na praia. Já 20kg de argamassa mal pagam um Uber. Sim, eu meço a vida em viagens. Essa é uma afirmação polissêmica.

Algumas viagens poderiam ter tido menos acidentes ou caminhos mais asfaltados mas, até agora, vou levando.

Voltar a fotografar me traz uma cacofonia de memórias. Nem todas boas.

Fui ver o documentário da imensa Elis. Pleno 2023 e ainda passam pano para homem branco machista e arrogante. Que cansaço, sabe.  Sim, eu sei que o Brasil acha o Tom o máximo. Eu acho ele só mais um babaca em uma lista muito, muito longa.

Por sorte, a companhia, como sempre, salvou a noite.

E pensar que uma das câmeras de que tenho mais estima veio de um machistão velha guarda, branco, europeu e, ainda por cima, rico. O presente foi de seu filho, que era um amorzinho. Quis que eu ficasse com o equipamento de seu pai. É uma das muitas músicas que compõem a cacofonia de que falei.

Meço a vida pelas viagens, pelas companhias e pelas companhias nas viagens. Inclusive as que ficaram pelo caminho.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho