Velhinha cansada

Chega um momento na vida que interações sociais precisam envolver cadeira confortável, acesso fácil, banheiro limpo e, de preferência, comida
Ilustração: Thiago Lucas
29/05/2025

Virada Cultural em São Paulo. Pepe Cisneros Quartet no auditório do Instituto Cervantes. Convido um amigo querido. Vamos. A banda ou o instituto, jamais saberei, decide que iam se apresentar não no auditório, conforme anunciado, mas na entrada. O que significou que as pessoas, ao invés de estarem confortavelmente sentadas nas poltronas vermelhas, precisavam ficar em pé. Não temos mais idade para isso. Fomos embora.

Tem um show marcado para começar meia-noite. Não há cafeína disponível na indústria que me faça sair de casa para qualquer coisa num horário desses que não envolva entrar em um avião e acordar em outro país.

Eu não faço nem samba e nem amor até mais tarde. A única coisa que tenho feito até mais tarde é dar aula. E, no dia seguinte, acordar 5h30. A vida do proletariado não é nada poética.

Alunos me convidam para um encerramento do semestre no bar. Eu já não sou muito fã desse tipo de interação: não somos amigos, somos professor-aluno. O prego final no caixão foi que o encontro seria a partir das 23h30 em um dia em que dou aula a partir das 7h30. Zero condições.

Interações sociais precisam envolver cadeira confortável, acesso fácil, banheiro limpo e, de preferência, comida.

Isso tudo é, claramente, um sinal inequívoco da minha velhice galopante.

Nina Simone, a jovem cachorra velha, vai pelo mesmo caminho. Não dá nem dez da noite e ela se deita na cama e fica me encarando, como quem diz tá tarde, humana.

Quando eu era jovem, tive um relacionamento relevante com um músico. Passei quase uma década chegando em casa quando as pessoas estavam saindo para levar filho em escola e trabalhar. Era bom, padaria abrindo, pão sempre fresquinho. Gostava daquela vida. Só não tenho mais a estamina necessária. Minha grande dúvida é se, quando me aposentar, darei uma de Nelson Gonçalves. Boemia, aqui me tens de regresso, aquela ladainha toda.

Ainda estou um pouco irritada com o quarteto. O horário era perfeito. No meio da tarde de domingo, sob medida para velhinhos cansados como eu. E velhinhos cansados gostam de ficar sentados. De preferência em poltronas confortáveis em um lugar com ar-condicionado. Nem precisam ser vermelhas.

Difícil andar na Paulista. Tem gente brotando do chão feito fungo. E um povo que anda morosamente, como se o mundo não estivesse acabando, como se o planeta não fosse explodir, como se a extrema direita não estivesse voltando, como se ainda fosse ter trabalho daqui 20 anos. Eu estou velha e cansada, mas não sou devagar.

Gente lerda gera gente lerda, já dizia o profeta. Ou algo parecido.

Nina não está conosco, mas ando na rua como se ela estivesse.

Nina não gosta de sons altos, de carros, de dormir muito tarde, de almoço atrasar, de frio, de chuva, do vizinho, do barulho do celular, do toque do interfone, do despertador, de patinetes, de vendedores ambulantes, de panfleteiros, de alto-falantes, de cheiro de fritura, de outros cachorros, de fumantes e de bêbados.

Ou talvez seja eu, não tenho certeza.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho