Um Dasein do adeus

Quando a família é um balaio de gatos, onde as relações são ditadas pelo amor e pela vontade de estar perto
Ilustração: Denise Gonçalves
11/05/2023

Lidar com a iminência da morte não é tarefa agradável para ninguém.

Tenho mais dificuldade em aceitar a impermanência de pessoas próximas do que a minha própria mortalidade. A consciência da morte não me desespera, apenas me apressa. O tempo é curto demais. Daí explica-se, facilmente e sem a necessidade de uma formação em psicanálise, a quantidade de coisas que eu faço.

Consigo claramente ver a gênese desse pensamento, que herdei da minha mãe: viver sem concessões à banalidade. Falei sobre isso no prefácio do último livro dela, póstumo, Kafkianas (Todavia, 2018).

Me esforço, entretanto, para ser menos difícil do que essas duas irmãs, a que infelizmente já se foi e a que está indo. Temo estar falhando miseravelmente. Estou a cada dia mais parecida com minha mãe, tanto o bônus quanto o ônus.

Minha família é uma de quinas, arestas, esquinas e ângulos agudos. Nada fácil, nada suave, nenhuma curva. Assim é a história de todos os imigrantes, os fugidos de guerras, os que vieram do nada, de abaixo do nada. É uma história comum no Brasil.

Tem um poema do Mário de Sá-Carneiro que sei de cor desde a adolescência:

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio.
Que vai de mim para o Outro.

Ou seja, na verdade, eu não sou, eu estou. Você também, viu? Não somos, estamos.

O Ser-aí-no-mundo ou, para os mais finos, o Dasein heideggeriano, é um exercício permanente.

Enquanto escrevo, Charles III é coroado. Nada faz sentido.

Quando família presta para alguma coisa além de histórico médico, ela passa adiante a poesia e o afeto, jamais a soberba e o autocentrismo. A minha é um balaio de gatos, onde as relações são ditadas exclusivamente pelo amor e pela vontade de estar perto. Quem eu chamo de pai não tem qualquer relação biológica comigo. Quem eu chamo de irmão apareceu na minha vida adulto ou quase isso.

Genética é uma ficção, só o afeto importa.

Não tem uma única pessoa nesse catso de família que não tenha pago um preço alto por se manter sendo quem teve vontade de ser no momento em que quis. Veja, eu não disse “ser quem é”, essa frase de autoajuda idiota e conservadora que não aceita a metamorfose ambulante que somos todos nós.

Quem está prestes a morrer transformou essa angústia em viagens e conheceu o mundo inteiro. Teve a vida que quis ter e eu acho que essa é a maior vitória que se pode ter.

Ainda assim, é difícil.

Sempre é.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho