Tortos

Quadros tortos, férias reais e uma casa tomada por bichos afetuosos revelam que a ordem absoluta talvez seja só outra forma de afeto
Ilustração: Italo Amatti
25/12/2025

Não tem um. Nenhum. Nem unzinho. Não tem um único quadro reto na minha casa. E eu sei disso desde 2014, mais ou menos. Uso esse fato como uma carta de alforria toda vez que (corretamente) me acusam de ter TOC.

Meus livros — que não são poucos — estão organizados por área/assunto e sobrenome de autor. Em ordem alfabética, naturalmente. Apesar de que isso é apenas bom senso, não é TOC. Preciso ser capaz de achar o que procuro.

Meu material de pintura está organizado por medium (água, óleo, grafite, cera) e depois por cor. Apesar de que isso é apenas bom senso, não é TOC. Preciso ser capaz de achar o que procuro.

Minhas roupas estão arrumadas por temperatura, categoria e ocasião. Roupas de frio, calças, formais. Roupas de verão, saias, tanto faz. Apesar de que isso é apenas bom senso, não é TOC. Preciso ser capaz de achar o que procuro.

A geladeira está um caos. Não tenho como defender. Mas acho o que procuro com facilidade.

E então é Natal. Feliz ocasião aí para vocês que dão a mínima. Eu, cá, continuo a olhar para os quadros tortos na parede e pensar que ando meio de saco cheio deles. Os quadros não têm culpa. Dos dez que estão na parede da sala, seis são da minha mãe. Adoro. E não aguento mais. Talvez por isso estejam tortos.

Filho é da opinião de que, se estão todos tortos, nenhum está torto. Criei um filósofo.

Estou, nem acredito, de férias. Férias de verdade. Não férias-vou-fazer-mais-um-pós-doc-duas-exposições-quatro-artigos-seis-ilustrações-e-um-projeto-novo. Só férias. Quem está aproveitando é Nina Simone. Vou ao parque dos cachorros três, quatro vezes ao dia. Às vezes até lembro de levá-la comigo.

Doce Nina já dobrou os felinos. Frederico, que já chegou igualmente meigo, agora é um chiclete grudento carente. Verônica, que, a princípio, parecia uma psicogata arrogante, agora é uma máquina de ronrons e dorme aninhada no pescoço da Nina.

Nina Simone deveria se candidatar a algum cargo na ONU. Ela vence qualquer resistência, derruba qualquer raiva e melhora o humor de qualquer ambiente.

Tenho essa opinião sobre cachorros. No fundo — talvez na superfície mesmo — eu concordo com o Raul Seixas que, por sua vez, já estava parafraseando outro que estava citando um terceiro e sei lá onde isso acaba/começa. “Quanto mais conheço a humanidade, mais eu amo os meus cachorros.”

Os filhotes de cruz-credo felinos chegaram não tem nem um mês e já posso pedir à Nina: “traz o Frederico”, “cadê a Verônica?”, “Nina, tira os gatos do quarto”.

Os três, daqui a pouco e certamente, estarão planejando um motim. Tomarão conta do meu cartão de crédito e aprenderão a senha da petshop. Se eu não der notícias em algumas semanas, vocês já sabem.

Deito no sofá e os três se chegam. Os Três Chicletes grudam em mim de tal forma que desisto de ler. O livro é bom, recomendo. O problema é que o ronrom é melhor.

Acho que vou jogar todos os meus quadros fora e substituir por uma grande foto dos Três Chicletes. O espaço que sobra dá, fácil, mais umas oito estantes de livros. Ó…

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho