Tecnologia mon amour

A irritação com pessoas calmas em momentos caóticos da vida; e o conforto de contar com o amparo das tecnologias
Ilustração: Bruno Schier
16/05/2024

Todos nós temos algum tipo de anjo na vida. Pode ser um médico que ajudou em um momento complicado, um colega de trabalho generoso, um amigo-para-toda-obra, uma professora que acreditou. Alguém. O meu é o técnico de computador.

Meu computador morreu. Não liga, não muge, não tuge, não pisca. Só jaz ali, ocupando espaço. O técnico ainda não chegou. Não sei se o cadáver de plástico e metal ressuscitará.

F., o nobre que já salvou do lixo e do meu ódio vários outros computadores, notebooks e tablets antes desse, é um homem calmo e isso, quando eu estou em pânico, angústia e sofrimento, me irrita.

Conheço algumas figuras misantropas que se irritam com a felicidade alheia. Não é o meu caso. A alegria, o sorriso, do outro sempre me fazem bem. Posso não saber o motivo, posso até mesmo não conhecer a pessoa. Me alegro junto.

A calma, não. A calma me irrita. A calma, em momentos assim, me ofende.

Não odeio a espécie humana. Não teria virado professora se odiasse. Odeio só a calma humana.

Ainda assim, muito me alegra que o anjo calmo F. esteja a caminho para (tentar) salvar meu computador.

O pânico só não é maior porque tenho backup de quase tudo. A perda de dados seria mínima. Mas é fechamento de semestre. É a pior época para um professor ficar sem computador. Já estou me vendo invadindo a casa de familiares e amigos, pedindo um café e um pouco de tempo de computador. Pareço uma junkie de tecnologia. Só um pouquinho de computador, por favor. Cinco minutinhos. Você nem vai perceber que eu estou aqui.

Escrevo a crônica no celular. Tecnologia mon amour.

Isso dito, olho para a pilha de livros — todos impressos — que me aguarda. Livro é uma boa tecnologia. Não precisa de eletricidade ou bateria, raramente quebra, dá para emprestar para aqueles dois amigos de confiança, dá para doar para bibliotecas, dá até para grudar uns post-its na lateral.

Tem horas que a vontade que dá é de largar tudo e abrir uma barraquinha de água de coco na praia. Aceito pix. Ó a tecnologia aí de novo.

Por falar em tecnologia, apesar de adorar ir ao cinema, sou grata por vivermos na época do streaming.

No dia das mães, filho e eu assistimos a dois filmes: Janela indiscreta (Hitchcock, 1954) e Sunset Boulevard (Billy Wilder, 1950). Fiz pipoca.

Nina Simone gostou muito de Sunset Boulevard, especialmente pela trilha sonora. Sabe como é, jazzistas são assim mesmo. Ela gostou particularmente da referência à música Mad about the boy (Noël Coward, 1932), que aparece na forma de dedicatória dentro da cigarreira de ouro.

O filme está disponível no Belas Artes a la Carte. Não é um spoiler, apesar de que eu acho que não dá para considerar como spoiler qualquer informação de um filme de 1950 em preto e branco.

Ficarei satisfeita se o computador não acabar seus dias flutuando em uma piscina. Veremos.

Existe uma pequena, ínfima, possibilidade de a Nina Simone ter gostado muito da sessão de filmes por causa do cafuné na barriga e dos agrados que ganhou. Não, que bobagem a minha. Foi o roteiro. Certeza.

PS: Escrevo com o coração na mão pelo Sul. Tenho parentes e amigos próximos em Novo Hamburgo e Porto Alegre. Não me dedico a outros temas ignorando essa ferida. Escrevo outros temas como um escape. Se você puder ajudar, doe pelo Banrisul.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho