Tango argentino

As muitas mortes que carregamos pela vida e a arte como uma forma de resistir aos ridículos tiranos
Ilustração: Conde Baltazar
09/05/2024

Minha mãe morreu muitas vezes.

Nós morremos e nascemos muitas vezes durante nossa vida.

Também vivemos na morte.

Descubro que uma amiga está com esse mesmo câncer. E então minha mãe morre novamente depois de morta.

Não há tango argentino que dê conta.

Fica só o silêncio. Esse sempre vence. Permanece. Permanências.

Em uma das obras da minha exposição Palimpsestos (MIS-Campinas, 2023), há uma carta. Uma carta horrível, escrita para mim quando eu tinha 3 ou 4 anos de idade e entregue pela viúva do autor, uns poucos anos atrás. Mais um morto. Li, pensei a respeito, incorporei na arte e joguei fora.

Fiz o que soube: arte e lixo.

No melhor estilo Elvira de ser, joguei tudo fora.

Joguei fora as cartas recebidas.

Joguei fora os recortes guardados a meu respeito.

Joguei fora o envelope.

Joguei fora meus mortos.

Joguei fora alguns vivos.

Joguei fora tudo o que consegui.

E, depois da exposição, joguei fora as obras também. Restam apenas os arquivos digitais que as geraram.

É, no fundo, um ato de resistência aos podres poderes. Às motos e fuscas que avançam. À América católica. À estúpida retórica. Aos ridículos tiranos.

Ainda que o ridículo tirano seja um pai igualmente morto. Morto muito antes de morrer. E era isso, justamente, o que ele mais temia. “Carolina, tudo o que eu quero é que a minha morte e o término da minha vida aconteçam no mesmo momento.” Mas não, não falo dessa morte. Me refiro à morte que ele provocou quando me escreveu as cartas.

Morri quando li. Morri quando joguei fora.

Outra morte, a das cartas. E das obras.

É querer gritar. E gritar.

Mas o silêncio fica.

Raiva, fome, sede.

Como não sei cantar vagabundo, morro.

Às vezes é importante morrer.

Ou matar.

Em silêncio.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho