Sob a sombra

A arte como um poderoso escudo contra a truculência de um mundo machista e violento nas pequenas e grandes coisas da vida
Ilustração: Bruno Schier
21/12/2023

No momento eu tenho uma pia de cozinha toda errada, um encanamento estranho, janelas sem cortina, chuveiro sem box, uma pintura faltosa e contas a pagar.

O importante é que só faltam duas caixas.

Tudo bem, vamos vivendo.

Se o Alzheimer não me pegar e enquanto me for dado escolha, nunca mais faço obra.

E se você, pessoa desajuizada, estiver pensando em fazer essa loucura em São Paulo, me consulte. Te digo quem não contratar.

O que mais me destruiu não foi o prejuízo, as coisas erradas, o que foi malfeito, a falta de capricho. Não. O que mais me destruiu foi o desrespeito, o machismo, a estupidez.

A minha esperança é a de que essas pessoas encontrem pela frente alguém grosso à altura. Desejo alguém bem truculento e de pavio curto, que não leve o desaforo para casa. O problema é que nesse caso, o imbecil estúpido rapidamente se transforma no lorde educado. Porque, além de babaca, é também covarde.

Preciso dizer que são todos homens? Não, não preciso.

Ah, nem todo homem. É, realmente. Mas sempre um homem.

Não faz nenhuma diferença na vida dessas pessoas o quanto de sofrimento causaram. Acho mesmo que essas pessoas continuarão impunes e causando transtorno por onde passam. Não faz nenhuma diferença na vida dessas pessoas nada, absolutamente nada. Muito menos essa crônica.

Eu tenho do meu lado a literatura, a arte, a poesia. E eles passarão, eu passarinha. Sempre. Não vou permitir que essas pessoas matem o que há de melhor em mim.

Se houver alguma justiça nesse mundo… Não, esquece. Não há justiça. O que há é que eu continuarei a ter uma vida interessante e rica e essas pessoas continuarão em sua pequenez. É castigo suficiente elas serem quem são.

Foi esse o real motivo da ausência da crônica na semana passada. Ficou muito difícil viver. Estava doloroso respirar, existir, estar. Então, pela primeira vez em 170 crônicas (206 se contar o Vida Breve) não dei conta e não consegui entregar o texto em tempo. Peço desculpas.

Nina Simone, felizmente, não liga para a pia da cozinha, para a pintura, para a extorsão do encanador, para a desonestidade e incompetência da marmoraria, para o roubo do pedreiro.

Nina liga apenas para o que é importante.

Nina se importa com o todo.

Nina Simone aprovou o sofá, a janela grande, o novo local de sua casinha de madeira, o parque dos humanos e o restaurante pet friendly da esquina.

Nina Simone não aprovou a porta do elevador e o parque dos cachorros. Cantoras de jazz não frequentam parque de cachorros. Cantoras de jazz frequentam pubs, caminham por avenidas e descansam em bancos sob a sombra de árvores frondosas.

It’s a new dawn
It’s a new day
It’s a new life for me, yeah
And I’m feeling good

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho