Selbst qualquer coisa

Num mundo mesquinho e preconceituoso, não há manobra de Heimlich que salve uma alma atropelada, engasgada, silenciada
Ilustração: Thiago Lucas
29/08/2024

Meu deus do céu jesus amado buda gordinho padim cícero socorro agosto está acabando. Ainda estou tentando dar conta de que entramos em dois mil e vinte e blablablá.

Quando eu era adolescente, mencionava a data de dois mil e vinte como um marco longínquo, inalcançável. Passamos alguns anos do que um dia eu considerei como futuro distante. Entre o meu futuro distante e hoje, uma pandemia mundial. Sinto-me atropelada por Cronos dirigindo um Fusca rebaixado.

Tenho uma sensação difícil de descrever, de que me ultrapassei. De que morri em 2020. Deve existir uma expressão para isso em alemão. Über sich selbst hinauszuwachsen. Estudei anos de alemão e continuo sem entender a ordem dessas construções. Sich hinauszu über wachsen selbst. É um povo que pega um verbo, quebra em pedacinhos e distribui pela frase como se fosse pipoca. Hinauszuwachsen sich über selbst. Saudades do trema. Sich über winden selbst. O bom de inventar palavras em alemão assim, na cara dura e sem qualquer vergonha, é que existe uma chance não-nula de acertar. Idioma divertido. A noção de que eu über sich hinausgewachsen não é agradável. Não é boa. Não entendam isso como positivo, não é. É, na verdade, bem doloroso. É sofrido, solitário. É também ridículo.

Com o passar dos anos, aprendi a temperar os sapos que preciso engolir. Existem alguns, entretanto, que entalam. Não há manobra de Heimlich que salve uma alma atropelada, engasgada, silenciada. Apesar do nome, o dr. H. Heimlich era norte-americano, não alemão. Morreu no finalzinho de 2016. Não, não morreu engasgado, ô engraçadinho. Foi ataque cardíaco. O Heimlich é daqueles que fazem tão parte do nosso inconsciente coletivo que a surpresa era de ué, ele ainda estava vivo?

Eu engulo sapos sobre obesidade todo santo dia. E engasgo. É impressionante como aprendemos, como sociedade, que as outras fobias e preconceitos são ruins, mas a gordofobia é aceitável. Ou, segundo alguns autores, sequer existe. É disfarçada sob o pretexto da saúde ou do cuidado. A associação do gordo com o desleixado é constante. Daí para associar o gordo com o incompetente, é um pulo. Não que um gordo não possa ser, além de gordo, também incompetente. Claro que pode. Mas uma característica não tem relação com a outra.

Eu saí, tem uns anos já, da faixa da obesidade. Foram mais de 30 anos convivendo com isso. Então, quando alguém próximo, que acompanhou tudo, associa a obesidade a um desleixo, a uma incompetência, me machuca. Machuca individualmente, pessoalmente. É um ataque a mim, diretamente. Machucado que sangra.

Sempre teremos assuntos ou comentários que nos ferem mais do que outros. É natural do bicho humano que somos.

Recentemente uma pessoa afirmou que a minha produção acadêmica existe à sombra da produção da minha mãe, que não era acadêmica e não era professora. Seria mais ou menos como afirmar que um veterinário só consegue a sua clientela graças ao pai dentista. São áreas remotamente afins? Sim, talvez. São o mesmo meio? Não. E pensar na quantidade de vezes em que conscientemente eu não usei o nome da minha mãe… Acho, aliás, que o sobrenome me trouxe mais ônus do que bônus. Não importa.

O que importa, no final das contas, é a nossa capacidade de cicatrização.

Capacidade que não tenho.

Eu sangro.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho