Rodovia Spinoza

Tenho saudades de pessoas, não da cidade, mas, daqui do alto, da sacada do quarto de hotel, o Rio continua lindo
11/11/2020

(12/11/20)

Estrada é uma dessas coisas que sempre faz bem. Seja indo ou voltando, tanto faz. O olhar da gente se perde e, de curva em curva, muito assunto se resolve. Estrada é o similar acordado do inconsciente trabalhando nos sonhos. Por outro lado, é exatamente por esse motivo que é tão perigoso. A cabeça da gente acha “ah, estamos dormindo” e o corpo tenta agir de acordo.

Chego no Rio por uns breves dias, cidade onde não dirijo desde 2007. Para minha satisfação e, confesso, surpresa, não preciso de GPS. Sei exatamente onde estou e para aonde devo ir. É um tipo de memória não muito clara. É quase instintiva. Sigo um ritmo, um cheiro, a memória corporal de que devo ir naquela direção.

Os mais cultos vão dizer que Spinoza, o velho Baruch, falava disso quando escreveu sobre o “saber no corpo”. Não estou nesse grupo. Acho mesmo que lembro porque sou o cachorro salivante do Pavlov.

O paulistano que estava comigo achou estranhíssimo que uma rua importante como a Atlântica simplesmente mude de mão aos domingos. Ele estava visivelmente incomodado em ir na direção contrária às setas marcadas no chão.

Aproveitando que estava motorizada, fiz questão de visitar a rua da minha infância. Na loja térrea do prédio onde fui criada agora tem um bar movimentadíssimo e lotado. Carioca, aparentemente, não acredita na pandemia. Gostei da cara da rua, arborizada.

Lembro de quando minha mãe começou o movimento, à força e com base exclusivamente na raiva e na rebeldia, de arborizar a rua. Contei pelo menos seis árvores que ela plantou que ainda estão lá. Ela acordava muito cedo, bem antes da Fundação Parques e Jardins, e descia com uma enxada e plantava as mudas. Ela tirava as espadas de são jorge dos canteiros maiores e plantava mudas de árvores frutíferas. Porque sim. Porque foda-se. Que era, resumidamente, como ela fazia tudo na vida.

A rua está uma graça. Lotada, movimentada e bem cuidada como sempre esteve.

As crianças, na época em que eu era uma delas, fechavam a rua para jogar bola aos domingos. Porque sim, porque foda-se. Minha mãe fez escola. Passaram-se algumas décadas e ainda mantemos contato.

O que me lembra de uma história engraçada.

Para que os nomes de um determinado grupo na minha agenda permaneçam juntos e mais fáceis de encontrar, escrevo o grupo antes do nome. Então, por exemplo, médicos ficam sempre Med Fulano, Med Beltrano, etc.

Um ex, lá pelas tantas, pega minha agenda ­– ainda impressa – e vem, irritadíssimo, tomar satisfações:

— Quem é Rodrigo?

— Não conheço nenhum Rodrigo.

— Mentir é pior. Quem é Rodrigo? (já aos gritos)

— Não conheço nenhum Rodrigo.

— Como não? Rodrigo, aqui. (e mostra a agenda, cheia de Rodrigo Fulano, Rodrigo Beltrano)

Quando consegui parar de rir, respondi:

— Rodrigo de Brito, a rua da minha infância, sua anta.

Não por acaso é ex.

Seguimos, através dos vidros de um carro com ar condicionado, na rodovia da memória. Subindo o Cosme Velho, mostro onde estudei a parte mais importante da minha vida escolar. E já, completamente incorporada no espírito carioca que retornou ao meu corpo em uma velocidade assustadora, faço um retorno que não existe. Porque sim, porque foda-se.

Chove. Eu gosto de chuva normalmente, mas tinha esperança de encontrar um Rio ensolarado. Vejo a praia do alto, da janela. É, no mínimo, poético ficar em um hotel na cidade onde vivi 4/5 da minha vida.

Tenho saudades de pessoas, não da cidade, mas, daqui do alto, da sacada do quarto de hotel, o Rio continua lindo.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho