Retoques

Todos precisamos de reparos, mas o Brasil (ao que parece) tem muito mais urgência numa boa reforma
Detalhe do cartaz do filme “Nada de novo no front” (1930), do diretor Marco de Lewis
18/05/2023

Preciso retocar muita coisa na vida. Tatuagens, paredes, finanças, armário. Começo pelo cabelo.

O cabeleireiro, que me conhece tem séculos, diz que meu cabelo está caindo. Respondo que existem apenas duas possibilidades: velhice e estresse. E que eu nada posso fazer a respeito de nenhuma delas. Ele ri, acena com a cabeça. “O mesmo vermelho de sempre?” Sim, por favor. Sim, por favor, alguma estabilidade na minha vida, penso mas não respondo.

Rio de Janeiro toda hora, agora. Que morte horrível.

Andando na rua, procuro com o olhar, mas sem grandes esforços, gorrinhos engraçados para quando eu ficar careca. Sempre soube que meu destino era um gorro do Pikachu.

E eis que foi dia das mães. Vimos, filho e eu, All quiet on the western front (Nada de novo no front), a primeira versão, de 1930. Ridiculamente atual.

O filme escancara o que é uma guerra, distante da glamourização do soldado “guerreiro” das últimas décadas de Hollywood.

Vimos filme com pipoca e iFood porque ninguém merece restaurante num dia desses. Um dia em pijamas é sempre um dia de sucesso para alguém sobrecarregado. Outro tipo de retoque.

Nina cresceu e precisa de uma nova coleira. Para facilitar a minha decisão, ela comeu a antiga. Cachorra prática. O que me leva a entender que ela está redecorando a casa. O sofá também precisa de retoques.

O app do banco parou de funcionar. A faxineira quinzenal cancelou. O vidro da pipoqueira trincou. O carro está na oficina. A cordinha do varal está quase arrebentando. O estado de cansaço é tal que eu já nem ligo mais.

Googlo sobre cirurgia plástica. As imagens me fazem, imediatamente, mudar de ideia.

Pelo menos o meu cabelo ficou bom.

Nesse instante, preciso trabalhar, produzir, escrever, corrigir prova, cozinhar, fazer mercado e feira, faxina, arrumar os livros espalhados pela casa, lavar roupa.

Portanto, vou passear com Nina.

Escolho a rota mais longa. O caminho mais esquisito. As ruas por onde nunca entro.

Cenas do filme ainda reverberam na minha cabeça.

Na rua, moradores, bêbados, loucos, falidos, trabalhadores, viciados, mendigos. Andar na rua fora dos bairros nobres não tem sido simples. Estamos sofrendo as consequências de decisões de gente tosca, mesquinha e desumana. As cenas urbanas me levam de volta ao filme. O Brasil também precisa de reparos urgentes.

Nina me olha estranho. Ela acha que o meu caso não é mais de retoques, é de reconstrução mesmo. Pffff, que nada, isso aqui é tombado. O Iphan me protege.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho