Relógio

Procurar um relógio analógico vira aventura em tempos em que medir o tempo parece menos urgente do que perdê-lo nas telas
Ilustração: Bianca Rivetti Burattini
06/11/2025

Sala dos professores. Quantos minutos ainda de intervalo? Pego o celular. Trezentas notificações. Abro o whatsapp, o instagram, o telegram, o uber, o email, o pinterest, a amazon, o kindle, esqueço de ver as horas.

Cinema. Quanto tempo falta para a sessão começar? Pego o celular. Trezentas notificações. Abro o kindle, o instagram, o whatsapp, o telegram, o uber, o pinterest, o email, a amazon, esqueço de ver as horas.

Restaurante. M. está atrasado ou eu cheguei cedo demais? Pego o celular. Trezentas notificações. Abro o email, o telegram, o kindle, o instagram, o pinterest, o whatsapp, a amazon, o uber, esqueço de ver as horas.

Se ao menos houvesse algum tipo de aparelho que nos mostrasse as horas apenas, sem distrações.

Decido, então, comprar um relógio de pulso, analógico, de ponteiros. Acho que é a tal moda paleolítica de que tanto falam. Finalmente serei uma pessoa in.

A coisa é tão anacrônica que eu nem sei direito onde vende relógio.

Não quero usar nenhum aparelho que tenha mais funções do que eu tenho ou sou capaz de administrar, nada-smart, de preferência burro feito eu.

Lembro de ter visto relógios em vitrines no shopping, mas pareciam joias que, além de serem para outra classe social, são um letreiro neon-broadway de “sequestre-me”.

E, para piorar, não quero comprar na internet. Prefiro sentir no pulso, o peso, o tato, essas coisas.

Lá vou eu pro shopping, me sentindo Indiana Jones em busca do cálice sagrado.

Como esperado, encontro os smarts e as joias aos borbotões.

Encontrei também uns esportivos medonhos, enormes. No meu pulso, parecem uma versão ligeiramente menor de uma tornozeleira eletrônica. Não tenho o braço/pulso necessário para usar uma coisa dessas. E, até o presente momento, ainda não perdi meu réu primário.

A vendedora fala um outro idioma. Me diz que a abominação que quer me vender é boa para “treino”, medir sei-lá-o-quê, contar passos, contabilizar quilometragem, monitorar isso e aquilo e, ó glória, não preciso me preocupar com assalto porque a traquitana armazena tudo automaticamente na nuvem. Colega, não quero aparelho nenhum contando meus passos, monitorando meu corpo, emitindo relatórios e muito menos salvando minhas informações vitais, corporais, íntimas, em lugar algum. Coisa horrorosa. George Orwell foi um visionário.

Sempre que escuto “treino”, fico pensando para o que a pessoa está treinando. Campeonato de xadrez? Dueto de repentistas? Pular amarelinha com o neto? Cantor de ópera? Master chef? Nunca acerto.

Depois de muita caminhada inútil, a claustrofobia já batendo forte, aquela irritação que só um vendedor insistente é capaz de causar, encontro uma loja promissora. O relógio mais barato custava quase três mil reais.

Voltei para casa de pulsos vazios.

Entrei na internet. Mais uma derrota.

Comprei um por cento e quarenta reais. Não é nenhuma maravilha, mas me pareceu aceitável.

Chega amanhã.

Oremos

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho