Muito difícil existir.
Nos colocam em caixas, o tempo todo. É a filha de. A mãe de. A funcionária de. A chefe de. Nunca, jamais, uma pessoa mais ou menos inteira.
Precisamos vencer o machismo e a misoginia do nosso meio profissional/acadêmico de escolha. Sempre tem. Em maior ou menor grau, mas tem. E, se você acha que não tem, você é parte do problema.
Estudamos e nos especializamos mais do que os colegas homens, mas são eles que dominam os cargos mais altos ou melhores. A justificativa mais utilizada é a da possibilidade de uma maternidade (e, consequentemente, uma licença-maternidade). Como todo mundo sabe, mulher faz filho sozinha. Brota que nem fungo. Aparece do nada. É assim: ela está lá andando na rua, aí passa embaixo de uma escada enquanto um gato preto a observa da janela e pum! Grávida. Aprendemos isso em Biologia básica, no ensino fundamental. Para mim, uma das bandeiras mais importantes do feminismo é que o homem tenha uma licença-paternidade de, no mínimo, 120 dias — um direito igual. Acaba esse argumento ridículo e ainda dá ao homem a oportunidade de, veja você que incrível, ser pai de seu recém-nascido.
Trabalhamos muito. Muito mesmo. Uma mulher padrão tem, no mínimo, dois turnos. Um deles não reconhecido, não remunerado. A sociedade tem uma relação tóxica com as mulheres.
Mas seguimos.
Estudamos. Algumas de nós passam por bacharelado, licenciatura, pós-graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado, outro pós-doutorado. E aí somos chamadas de “menina”. Anos de experiência, mais uns tantos em sala de aula, pesquisa, escrita, estudo — menina.
E aí ainda tem a aparência. A mulher gorda. A mulher baixa. A mulher magra. A mulher alta. Há uma expectativa de aparência, de uma possível aparência correta. Ou o mais próximo disso. Fazemos o que dá com o que temos. Nem todas nós nascemos Alices Carvalhos. Algumas de nós nascem Tânias Marias. E tudo bem. Mas nos esforçamos. Pintamos as unhas, fazemos o cabelo, escolhemos roupas bonitas. Escolhemos a dedo aquele sapato elegante que não vai nos mandar para o ortopedista, mas quase. Pagamos fortunas em batons de qualidade, depilação a cera quente, escovas. E vamos.
Somos, então, chamadas para apresentar o resultado desse esforço. Vamos. Aprendemos que palestrante parado é um estímulo ao coma. Então gesticulamos, ficamos em pé, andamos, apontamos, mostramos, interagimos.
Fazemos um esforço hercúleo de mostrar nossa face profissional. Evitamos publicar fotos ou vídeos pessoais. Jamais publiquei uma foto de filho, por exemplo. Meus perfis são fechados. Raramente alguma selfie e, quando tem, fica pouco tempo; rapidamente apago.
Não sou essa caixinha da selfie fácil. Não sou essa caixinha da mãe de. Da professora de. Da ilustradora de. Da escritora de. Não sou uma única caixinha. Sou todas elas. Eu sou tudo isso e mais um pouco. Então, que minha produção fale, não a cor da minha roupa ou a altura do salto do meu sapato.
E aí vem o cidadão, tira a pior foto possível e publica online. Nenhuma preocupação com a sua imagem. Sem consulta. Nenhuma reflexão sobre como a pessoa se posiciona. Sem reparar se a pessoa costuma ou não veicular a sua imagem. Muito menos de que jeito. Consideração zero.
É fácil não se preocupar. É fácil não ligar. É fácil dizer “péssimo fotógrafo” e rir. Como se fosse engraçado. Difícil é se preocupar com o desejo do outro.
Imagem horrível e descuidada no dos outros é refresco.
Muito difícil existir.