Quem faz sentido é soldado

Conversas aleatórias que escancaram um pouco (e muito) de como se constitui a fauna humana
Ilustração: Carina S. Santos
15/08/2024

Metrô. Uma senhora conversa com outra. O filho virou vegano depois de casar-se. Tudo bem, ela diz. Sicrana é uma ótima moça. Então, para mostrar seu apoio, ela sempre faz o caldinho de feijão que o filho e a Sicrana adoram. Ah, como você faz, pergunta a outra. Você tem processador em casa? Tenho. Muito simples. Deixa o feijão de molho e dá uma primeira fervura. Aí joga no processador com os temperos e volta pra panela para terminar de cozinhar. Hum, parece fácil. Que temperos você usa? Ah, eu coloco sal, um pouco de azeite, bastante cebola, alho e bacon.

Uber. O motorista, falando sozinho, me conta que está se separando. Depois de mais de vinte anos casados, a mulher resolveu frequentar centros de umbanda. Essa coisa aí de sacrificar bode. Ele não tem religião, não liga para isso. Agora, ele não pode entender uma mulher que decide virar macumbeira, crente ou judia. Pergunta minha religião. Temendo pela minha segurança, respondo “budista”. Um pouco de silêncio, finalmente. O motorista não se aguenta e recomeça o falatório autônomo. Diz que eu sei como é, porque sou budista. Diz que eu vou entender. Que ele admite tudo, mas esse negócio da intolerância religiosa da mulher foi demais para ele.

No café do campus, professores conversam sobre a importância de ética dentro da sala de aula. Em como devem fomentar esse debate com os alunos. Falam sobre essa geração perdida que não sabe mais o que é certo e errado. Ninguém se importa mais. É um problema crônico e patológico da educação nesse país. As pessoas precisam ler mais. Um deles cita um livro específico, que todos precisam ler. Outro abre o celular e acha na Amazon. Nossa, como está caro! Não se preocupe, amigo, eu tenho o PDF e te mando.

Ponto de ônibus. Passa um casal com um golden retriever muito simpático. Tem aquela gravatinha engraçada de quem acabou de sair de banho na petshop. Senhor faz carinho e diz que gosta mais de bicho do que de gente. Todos concordam. Bichos são melhores mesmo. Pessoas são horríveis. O ser humano precisa defender os animais. Todos os animais, inclusive as vacas. Você sabe o dano que a pecuária faz na camada de ozônio? Não temos o direito de assassinar animais dessa forma, diz. Nem termina a frase e pisa numa barata.

Café. Um grupo de quatro executivos engravatados reclamam do Lula. O PT isso, o PT aquilo. Que o bom mesmo foi 20 anos atrás. Até 2011, mais ou menos, ele se lembra porque foi quando nasceu o filho mais novo. Nessa época a gente ganhava dinheiro, o mercado estava bom, a vida era boa.

Entrada do cinema. Dois casais conversam sobre filhos. A importância de uma educação progressista. Ah, ensinei Fulaninha a andar de metrô desde nova. Sabe, é importante a criança saber se virar. Fulaninha é um prodígio. Desde muito nova sabe fritar um ovo, andar de metrô, usar computador e celular. Foi Fulaninha, inclusive, que configurou o Google Home da casa e agora a gente consegue mudar de canal até de dentro do chuveiro. Incrível mesmo. E por falar nela, cadê Fulaninha? O filme já vai começar. Segundo o Famisafe, está chegando em coisa de cinco minutos.

Padaria. A mesa ao lado discorre longamente sobre como são liberais, como são de esquerda, como são inclusivos, como são legais. A autoestima desse povo, minha gente, queria. Falam sobre uma amiga trans e como é importante o direito ao próprio corpo. Em seguida, quase como um moto contínuo, comentam sobre como Beltrana engordou. Se deixou levar. Não liga mais. Sabe, uma pena.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho