Pilar da ponte do tédio

Um passeio pelo campus da faculdade dispara o gatilho de lembranças e reconstrói uma deliciosa cartografia afetiva
Ilustração: Bruno Schier
22/06/2023

Semestre acabando, estamos só na repescagem: alunos em segunda chamada ou em prova final. São poucos, faculdade vazia. Gosto do silêncio, mas sinto falta do zum-zum-zum dos alunos. O que me mata nessas épocas de baixo movimento por aqui é a qualidade do café. A lanchonete meio que desiste e abre apenas por pressão dos três ou quatro professores que ainda teimam. Não tem nada e o café fica sofrível. Ruim naquele nível de dar dor no estômago. O que, grosso modo, significa que eu me torno uma ameaça à sociedade.

Tentando desopilar o amargor do café ruim, dou uma volta pelo campus. Gosto daqui. Tem árvores, bancos para sentar, banheiros limpos, caixa de banco, espaço para andar e, às vezes, até mesmo comida.

Ando pelas ruas do campus esboçando um certo saudosismo, de quando estava do outro lado do balcão, como aluna. Rapidamente lembro do quão difícil minha vida era nessa época e o saudosismo morre a golpes de realidade, esmagado pela clareza da memória. Para mim, pelo menos, não é muito verdade aquela máxima de que o tempo açucara tudo. Não esqueço. Não esqueço nem quem me ajuda, nem que me atrapalha. E essa é uma afirmação que serve, inclusive, para Eus do passado.

Fui a um cartório e, por um breve momento, fiquei em dúvida se estava no Rio ou em São Paulo.

Tem acontecido tanta, mas tanta coisa na minha vida, que caminho com um certo distanciamento do mundo.

Esse deslocamento de olhar é recorrente em muitos personagens que me são queridos, como Meursault (O estrangeiro, de Albert Camus) e Leopold Bloom (Ulisses, de James Joyce). Sim, muitas bandeiras vermelhas aí, estou sabendo e cuidando. Fica a pergunta se o impacto que esses livros tiveram em mim não foi, ao menos em parte, por conta dessa preocupante identificação. Há, claro, uma questão alarmante, a da anestesia, mas há, também, a capacidade de olhar sem julgar.

Lembro da primeira vez em que entrei nesse campus. Estava prestando prova para o mestrado, muito, muito antes de sequer sonhar em me tornar professora da casa. A entrevista, no meu entendimento, foi um desastre absoluto e eu achei que não tinha entrado. Liguei para minha mãe aos prantos. “Gostei tanto daqui, queria muito entrar, mas não passei.” Como em muitas vezes na vida, eu estava errada. Em seguida veio o doutorado com um lindíssimo primeiro lugar na seleção, bolsa de estudos e depois a contratação como docente. É uma trajetória da qual me orgulho.

Muito do que sou hoje foi moldado por esse caminho em específico. É idiota dizer que o que somos hoje foi por conta da nossa biografia. Além de óbvio e raso, cá entre nós, se aproxima perigosamente da autoajuda. Não, não… Falo de uma especificidade, de algo com uma importância maior que o restante. Falo de uma experiência transformadora. Como qualquer pessoa com mais de cinco décadas nas costas, tive a minha quota.

Continuo o passeio e percebo alguns marcadores. No banco onde me sento agora recebi notícias importantes. Sentada na grama, encostada na árvore à minha frente, chorei a morte da minha mãe. No café que não existe mais, paquerei um ex-namorado. Em uma sala no prédio atrás de mim, me reuni com pessoas que me são caras. Não por acaso gosto tanto de cartografia afetiva. Muitos desses marcadores não existem mais. Lembro do van Gogh, outro doido, que disse ao irmão: “Os moinhos não mais existem, mas o vento continua”. Assim como objetos, os espaços só possuem o significado que atribuímos a eles.

Pessoas, pelo contrário, são polissêmicas, heterogêneas, complexas, ainda bem. Mesmo sabendo disso, reduzimos pessoas a explicações simplistas, em busca de um padrão com o qual sabemos lidar. Por isso, classificamos pessoas. “Fulano é autocentrado”, por exemplo, não define a pessoa por completo — já que nada define — mas nos ajuda a encontrar uma chave de relacionamento com essa pessoa. Tenho um ex que acha que tudo é a seu respeito. Ai, que preguiça. Tenho um ex que acha que nada é a seu respeito. Ai, que preguiça.

Sigo andando e esbarrando em significados.

Nem todas as lembranças são agradáveis. De uma forma geral, faltam doguinhos.

Esse lugar seria perfeito se a Nina estivesse aqui.

Não sei se por estranheza ou por cansaço, olho o mundo com distância.

A loucura eu já tenho, só me falta a maestria do Camus, do Joyce ou do van Gogh.

Um dia eu chego lá, quem sabe.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho