Os bem cagados

Exaustão, injustiça e raiva diante de um processo seletivo já decidido, dominado por um grupo performático que circula com privilégios naturais
Ilustração: Kleverson Mariano
11/12/2025

O padrão feminino é algum vestido ou camisa “simples”, de uma única cor. Quando camisa, a calça ou a saia também é “simples”. De preferência de algodão cru ou algum tecido com aspecto “natural”. Por cima, mil adereços: braceletes, pulseiras, anéis, colares, pingentes, brincos. De preferência de madeira, acrílico, grandes, imponentes. Criam uma sobreposição geométrica/colorida/de textura ao/no vestido/camisa “simples”. O calçado é sempre uma sandália aberta, natural, de couro (guardem essa informação). O cabelo, impecável, sem uma ponta dupla, um ressacadinho aqui ou ali. Os brancos podem aparecer, para combinar com o “natural” do penteado. Os gestos são amplos, a fala é alta, a voz é imposta. O discurso é o da ecologia, da natureza, do consumo sustentável, do veganismo (usem aqui a informação guardada). A maquiagem, “nude”, para parecer “natural”.

E eu, exausta.

É um povo que nunca teve uma alergia, uma rinite alérgica, uma sinusite, uma prisão de ventre. Nada.

O padrão masculino inclui uma bolsa carteiro carregada na transversal, de preferência de tecido ou de couro (novamente, aquela informação). Os cabelos um pouco desgrenhados, a barba um pouco malfeita — o look é “natural”. O discurso é decolonial, lgbtqia+, mas sou hetero, sou feminista, mas olha aqui como eu sou incrível e desconstruído, chupa aqui.

E eu, só raiva no coração.

Todos se conhecem. Todos são amigos. Todos almoçam juntos. É um processo seletivo, e almoçam com quem seleciona. Falam alto. Chamam uns aos outros por apelidos e perguntam como foi a viagem à Guatemala, a Paris, a Londrina, à puta que pariu, não importa.

O cansaço, senhor, o cansaço que sinto não tem nome.

Continuo mesmo sabendo o resultado. Um amigo me avisou. Eu já sabia que era assim, mas fui de todo jeito. Fui porque sonho, porque acredito que, às vezes, ocasionalmente, o mundo pode se distrair por um momento e ser justo. Estou errada, obviamente.

A mulher que tirou os sapatos invade a copa dos funcionários atrás de um café. Ela está no processo seletivo para ser funcionária dali, mas já sabe o desfecho de tudo. Age de acordo. A mulher não é sem predicados, talentos ou competência. Não é esse o ponto. O ponto é que não há seleção. Nós somos os palhaços a fazer número — e legitimar — o processo da mulher que todos conhecem.

São dois grupos. Estou nos que se esforçam, nos que perdem, nos que trabalham. A mulher está no grupo que possui um know-how valioso, o do networking que entende o mindset necessário para enfrentar um application desses dentro dos deadlines e dos targets pedidos e conseguir o outcome desejado, provando que, no fundo, é tudo uma questão de ROIreturn of investment. Nem precisa esperar o feedback, ela chegou com o game plan pronto. Ela sabe que já é staff, antes mesmo de chegar. Está com o skincare em dia. O look, impecável. Ela tem um feeling sobre o lugar.

Meu deus, como eu odeio essas pessoas.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho