Nina Mendonça

Pão fresquinho, caras de coitada e uma Nina Simone dramática transformam um simples passeio em espetáculo digno de Hollywood
Ilustração: José Lucas Queiroz
09/10/2025

O cheiro do pão recém-saído do forno escapou pela porta da padaria e invadiu a calçada de uma tal maneira que, como todos sabem, a lei federal obriga a entrar e comprar pelo menos uns três ou quatro. É que evapora. Pão fresquinho nunca chega em casa na quantidade em que sai da padaria. Alguma relação com o efeito estufa, ouvi falar.

O cheiro de pão fresquinho é uma coisa que todo brasileiro conhece. Nunca conheci alguém forte o suficiente para passar incólume por uma situação dessas. Pode até não entrar e comprar, mas passará o dia inteiro sentindo aquele aroma no coração, na alma.

Prendi a guia no ganchinho que tem na porta e entrei.

Não fiquei nem mesmo cinco minutos fora de vista.

Foi mais do que tempo para que uma família inteira se aglomerasse em torno de Nina Simone, em comiseração. Nina fazia cara de abandono. Cara de pobre criatura. Cara de dor de corno. Cara de quem é cantora de brega, não de jazz.

O que deveria ter sido um inocente e calmo passeio no bairro foi uma oportunidade de a cantora de jazz demonstrar seus talentos para além da música. Hollywood não sabe o que está perdendo. Alô, Tarantino.

Saímos, as duas, resmungando de boca cheia.

O passeio durou pouco mais de uma hora.

Entramos de volta no prédio. Na garagem, uma vizinha aleatória que não conheço me diz: “Nossa, dá um pedacinho pra ele (sic)”. Olho pra Nina, e a cara dela agora é de quem passa fome. Daquele cachorro que caiu do caminhão de mudança. Cara de quem sofre maus-tratos. Cara de qualquer coisa, menos de quem come uma ração super premium e ganha petiscos todo dia. Cara de quem mora na rua, não de quem dorme em uma cama de casal e tem travesseiro próprio.

Uma amiga vem tomar um café. A casa ainda cheira a pão fresquinho e poucas coisas combinam tão bem entre si quanto cafeína e carboidrato.

Nina Simone, que tirou o dia para me fazer passar vergonha, deita-se na frente da porta com cara de quem está em cárcere privado. De quem não consegue sair. De quem não vê a rua desde o mês passado.

A amiga oferece, tentando ser educada, passear com a drama queen nos dias em que eu estiver mais enrolada. Agradeço e respondo que acabamos de voltar de um passeio. As três suspiram quase ao mesmo tempo.

Continua lá, com cara de coitada. Cara de sofrência. Cara de Marília Mendonça.

Cara-de-pau, isso sim.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho