Muitos E’s

A planilha de perdas é importante, pois nos lembra da nossa finitude e, se dermos sorte, seremos lembrados
Ilustração: Bruno Schier
05/09/2024

Eu conto os nascimentos, que me engrandecem, que me expandem. Desses, o que mais me importa, obviamente, é o de filho. Todos os outros, na longa História da Humanidade, são menores que filho. Mentira. Todos os outros eventos, contando do Big Bang até hoje, são menores que filho. A data mais importante para mim, da História de Absolutamente Tudo, portanto, é aquela quinta-feira de agosto. Não ligo para mais nenhuma outra.

É fato que eu contabilizo também as minhas mortes. Conto aquelas em que morro junto. Aquelas que cremam um pedaço de mim, rasgado em brasa. Registro as que me lembram da minha mortalidade. Que lembram que em breve, em um piscar de olhos e se tudo correr bem, serei eu na lista de alguém.

Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.

O Machado de Assis que habita em mim saúda o Machado de Assis que habita em você.

Eu me chamo Carolina por causa da Carolina Augusta Xavier de Novais, esposa do Machado. Foi Edu, o maior fã de Machado que já viveu, quem escolheu meu nome.

Pensei em usar, aqui na crônica, só as iniciais dos nomes, mas são muitos E’s na minha vida. Eva, Ellen, Edu. Elvira. Ficou confuso. Resolvi assumir. Dane-se.

Carolina e Machado foram um casal feliz por 35 anos. 1904. Carolina Augusta morre. “Foi-se a melhor parte da minha vida”, escreve Machado. Ela, portuguesa de nascimento e brasileira por opção, não conseguiu engravidar. É Carolina a mãe de todas as mães de pet. Adotaram uma cadelinha chamada Graziela, que foi a companhia de um viúvo e depressivo Machado a partir de sua viuvez.

Nina Simone aprova.

Não lembro a data de quando Eva morre. Lembro só de entrar em sua casa e ficar absolutamente chocada de ter uma foto minha. Passei a vida inteira acreditando que ela me odiasse. Não soube em tempo hábil, enquanto ela era viva, de que havia a possibilidade de um carinho. Não posso dizer que tenha sido minha avó.

1992. Quando Ellen ficou doente, eu fui. Quando ela morreu, eu quis ir, mas não era bem-vinda. Seus filhos não gostam de mim porque sou filha de Edu.

2007. Quando Ivan ficou doente, eu fui. Fui todas as vezes. Quando ele morreu, também. Era alguém que não podia morrer. Três meses mais moço do que eu. Primeiro namorado. Amigo. Sócio. Ele estava lá em todas as vezes em que morri. Ele era bom em remendar os meus pedaços.

Várias perdas entre 1992 e 2007 mas, com toda a sinceridade, cicatrizadas e, portanto, esquecidas.

2014. Quando Edu ficou doente, eu fui. Quando ele morreu, não. A viúva fez missa e ele era ateu. Achei incoerente. Elvira pensou em ir mas achou — equivocadamente — que não seria bem-vinda.

2017. Quando Elvira ficou doente, eu fui. Quando ela morreu, morri também. Morro todo dia essa morte. Mais de sete anos e eu ainda pego o telefone para ligar para ela. No dia de seu término, coube a mim avisar sua mãe, Olga.

2018. Quando Olga ficou doente, não fui. Quando morreu, também não. Estive em vida pouco e cada vez menos. Quanto mais Olga mostrava, menos eu me aproximava. Nunca tive uma avó como essas da literatura.

2023. Quando Sandra ficou doente, eu fui. Quando ela morreu, também. Ela não tinha mais ninguém. Éramos filho e eu. Falei para filho não ir. Eu fui. Resolvi o que precisava e voltei.

Essa planilha mórbida me é útil. Me lembra que acabamos e, se dermos sorte, somos lembrados.

1908. Machado morreu em um 29 de setembro, aniversário de Elvira. Foram levados pelo câncer, assim como Ellen e Ivan. Doença escrota.

Edu, que decidiu que meu nome seria Carolina, faria 83 anos de idade agora, dia 7 de setembro. O feriado é e sempre será uma homenagem ao fã de Machado de Assis.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho