Éris, deusa da discórdia, não é convidada pra uma resenha mó daora e fica pistola. Joga no rolê, então, uma maçã de ouro. Pomo é maçã. O pomo da discórdia. E fala que é para a mulher mais bela ali. As monas começam a se estapear. Zeus, um cara ocupado e de saco cheio, terceiriza a treta de falar quem é a mais bonita ali pra um mortal. É fria e ele sabe disso porque não é burro. O mortal era Páris. O mulherio, todo formado por deusas com superpoderes, começa a tentar subornar o cidadão para ser eleita como a mais bela. Prometem um monte de coisa, mas quem leva é Afrodite, que promete o amor da mortal que ele quisesse. Ele quis Helena que, por acaso, já era casada com um tal de Menelau, rei grego. E assim começa a guerra de Troia.
Não há uma única vez em que eu veja uma maçã que não pense no O almoço sobre a relva (1862–1863), do Édouard Manet, que rouba um pedacinho da gravura do Marcantonio Raimondi, O julgamento de Páris (c. 1515). A gravura por sua vez já é cópia de uma obra do Rafael, mas só conhecemos a dele pela do Raimondi. A obra do tartaruga ninja se perdeu no tempo. O julgamento é, justamente, essa treta que contei aqui, da maçã e das monas raivosas.
Maçã, essa fruta tão sem graça. Lembrem, sou brasileira. Tenho abacaxi, maracujá, fruta-do-conde, tangerina, manga. Fala sério, maçã, se esforce mais. Os gringos parecem gostar. Tem até aquele ditado norte-americano que diz que uma maçã por dia mantém o médico distante. A promessa é tentadora. Distância de médico é sempre uma coisa boa.
Ainda tem aquele barraco que rolou no Paraíso, com a Eva, Adão, a cobra e tal. O Gênesis não fala especificamente em maçã, mas é mundialmente aceito que foi o pomo que rolou ladeira abaixo.
Outra incerteza é a de Newton, mas o folclore é tão bacana que a gente só aceita.
Tudo isso passa pela minha cabeça enquanto desço o elevador com um jovem empreendedor vendendo morangos do amor, um pastiche barato da maçã do amor. Está na moda. Não experimentei e nem vou pelo simples fato de que não tenho interesse em consumir a minha quota de açúcar anual em uma única mordida. E, claro, pelo meu mau humor, mas achei que isso era um fato dado.
Ainda pensando em Páris, Helena e aquele fuzuê todo, entro em uma cafeteria da moda. Dessas que cobram trocentos dinheiros por um café. E um café, vamos combinar, bem mais ou menos. Em minha defesa, o chá é bom.
Na mesa ao lado, uma mãe desistindo e morrendo dentro do celular e uma filha tentando existir. Observo. Não é algo pontual. A mãe não sai do aparelho. Não gosto da mãe gratuitamente, só de olhar. Sim, sou dessas que acham que qualquer pessoa que acha um aparelho qualquer mais importante do que sua companhia viva não merece a minha consideração. Isso é verdade para celulares, televisores, relógios, fornos, tanto faz. A filha deve ter algo como cinco, seis anos. Está começando a ler. As duas claramente não têm grandes problemas financeiros.
Imagino que a filha frequente uma dessas escolas caríssimas paulistanas. Dessas que, pela mensalidade, esperamos que a criança saia formada em medicina aos 12. Uma graça, a menina. A menina aponta para algo e diz “A de maçã”. Claramente estuda em uma escola bilingue português e inglês. A for apple. Todo um tratado pedagógico-semiótico-filosófico-antropológico a ser escrito aqui. A mãe não larga a maçã capitalista que tem na mão. Nem percebe. É a mãe que sai perdendo.
Não tenho nada da Apple. Não gosto. Não tenho celular, computador, tablet, streaming, nada. Se você gosta, bacana. Zero julgamento aqui, veja bem. Eu não gosto, não uso. A minha geração chama isso de coerência. É um conceito antiquado, eu sei.
Sou velha.