Joelho de tinta

Uma fotografia da infância resgata um dos momentos mais felizes da vida, ao lado da mãe, das plantas e de um vira-lata preto
Carolina Vigna aos 4 anos de idade.
12/10/2023

Hoje é dia das crianças. Antigamente, quando as pessoas não estavam tão enlouquecidas, irritadas e cansadas, as redes sociais ficavam cheias de fotos dos donos dos perfis quando mais jovens. Bem mais jovens. A maioria, irreconhecível.

Isso foi antes da pandemia. Hoje, o importante é mostrar que a gente ainda está vivo. Ou quase vivo.

Eu adoro foto antiga. Recentemente fiz uma exposição com esse tipo de material, a Palimpsestos (MIS-Campinas, 2023).

Existe uma minha em particular que eu adoro. Tem data. Outubro de 1975. Nasci em março de 1971. Eu tinha, portanto, pouco mais de 4 anos. Estou no chão de uma varanda, pintando.

A varanda é do apartamento da Rodrigo de Brito, onde fui criada e cenário de muitas histórias que permeiam as minhas estórias.

Pela idade, a fotografia já está completamente desbotada e em tons sépia, o que me faz gostar ainda mais dela.

A fotografia não mostra, mas logo atrás da porta está a prancheta da minha mãe. Ficávamos as duas, horas a fio, trabalhando lado a lado. Ela, algo que prestava. Eu, rabiscos prestes a serem lavados com uma mangueira. Seriedades diferentes, mas a paz desses momentos me acompanha até hoje. É para ela que volto quando pinto ou desenho.

Esse espaço já abrigou também a oficina de marcenaria do meu pai. Tão fascinante quanto as tintas da minha mãe, eu queria fazer objetos, móveis, mundos. Infelizmente esse talento eu não consegui desenvolver. Tudo que eu faço fica meio torto, meio esquisito, meio inacabado. Bom, pensando bem, talvez isso se aplique a mais coisas.

Na fotografia dá para ver um dos muitos canteiros de plantas da casa. Minha mãe tinha o dedo verde. Em uma vida paralela, ela dizia, teria sido agrônoma. Tudo o que ela plantava, vingava. Até mesmo filhos.

Outro dia sonhei com a cerâmica hexagonal e com o Joaquim. Ele e eu fazendo uma enorme bagunça. Joaquim foi o primeiro de alguns cachorros pretos. Abraço a Nina, mais nova vira-lata, de muitos.

Joaquim não aparece na foto. Não me lembro se ele já existia nessa época.

Eu tenho tinta até no joelho e a expressão mais tranquila jamais captada em uma fotografia minha.

As tintas, o cachorro preto, andar descalça, o cabelo bagunçado e sentar como um garoto desleixado permanecem.

Ainda que a paz me falte, sigo aqui meio tortinha mas inteira, como tudo que minha mãe plantou.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho