Fantasmas

A necessidade de retornar a uma cidade indesejada, uma espécie de fantasma ardiloso sempre a cruzar o caminho
Ilustração: Carina S. Santos
24/08/2023

De repente, a máquina de lavar para e, com ela, o barulho agradavelmente constante que mascarava os ruídos urbanos. A louca que grita na rua todo santo dia. A buzina do apressado. O ônibus que nem preciso ver para saber que está na faixa errada. O filho do vizinho de cima. A TV de alguém no último volume. Um cachorro que late sem parar. Vasculho a minha memória em busca de mais alguma coisa para lavar. Não encontro.

Desisto de escrever e saio com Nina.

Na rua, uma sinfonia desafinada deixa claro que o bairro não tem qualquer tipo de identidade. Nada se conecta com nada.

Nada faz sentido.

Faz tempo que acho que o mundo, de uma forma geral, faz pouco ou nenhum sentido.

Nina não dá a mínima. Late para o pombo e para o cachorro do outro lado da rua, antigos desafetos. Para a Nina, passeios restauram o sentido do mundo.

Ando pela rua como se não estivesse ali. Nina é minha única conexão com a realidade. Devo muito a essa cachorra.

A cabeça está em outra cidade.

Na cidade onde cresci e que, sendo sincera, não gosto de estar. Nunca gostei, tanto que fui embora.

Como um fantasma ardiloso, a cidade cruza o meu caminho toda hora. Me atropela, me atrapalha, me atravessa.

Já me vejo chegando, resignada.

Vou sorrir com algum esforço para as pessoas no caminho. Vou sorrir com facilidade para o porteiro.

Vou praticar até que o gerente do banco acredite que esse era o melhor programa que eu tinha para fazer naquela tarde e que, sim, aceito o cafezinho seu porco capitalista de merda. Essa parte eu não verbalizo, só penso trincando os dentes do sorriso falso.

Entrarei uma última vez na casa dela, em breve com um novo dono, obra, outros móveis, outros quadros, outros barulhos. Ficarei em pé, sozinha, no meio da sala vazia. Não reconhecerei os ruídos e esse vazio de significado me sufocará. O ar ficará parado. Vou ficar tonta sem respirar. Não terei nem mesmo onde sentar.

Sei disso antes de ir.

E sei que precisarei sair. Precisarei ir embora. Precisarei nunca mais voltar.

Ainda assim, uma última vez, voltarei.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho