É preciso estar atento e forte

Protestos, fragilidades pessoais e lampejos de esperança se cruzam em reflexões sobre vulnerabilidade íntima e destino coletivo
Ilustração: Kleverson Mariano
25/09/2025

O protesto contra a PEC da Blindagem e a anistia já acabou. Alguém toca Que país é esse? no violão. Não fui uma adolescente fã de Legião Urbana, na época em que todos eram, mas essa música é icônica.

A inveja da trilha sonora carioca é inegável. Cogitei muito seriamente ir até o Rio só para ver Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque juntos em um palanque. O Rio é surrado. Vive apanhando da vida e da política. Merece um colírio desses de vez em quando. Nem que seja por alguma compensação cármica. São Paulo não fez feio, mas não teve esse trio.

Os amigos, tanto os cariocas quanto os paulistanos, mandam suas selfies no protesto. Retribuo.

Na rua, estouram fogos de artifício. A multidão bate palmas. Uma criança pequena tampa os ouvidos e chora enquanto outra pula e canta junto, a altos brados, o grito de guerra da vez. Elas têm mais ou menos a mesma idade. Fico pensando nessas crianças, tão iguais e tão diferentes.

Andamos mais um pouco. Vejo conhecidos uns metros à frente. Impossível atravessar a avenida para cumprimentá-los. Apenas registro mentalmente.

É preciso estar atento e forte. Infelizmente, atenção não é o meu forte.

Na calçada, do nosso lado, uma vítima de acidente ou de violência, não sei ao certo. Filho imediatamente diz: “Olha pra frente, mãe, olha pra frente, não olha, não olha”. Obedeço, agradecendo a proteção afetuosa.

Tenho memória visual, o que é útil, mas, por outro lado, faz de mim uma covarde imagética. Não consigo ver filme de terror sem ter pesadelos por semanas. Vejo uma foto do que a mídia chama de marcante ou qualquer outro eufemismo da moda e não consigo dormir.

Não posso ver sangue. Preciso fazer exame deitada — é uma vergonha só. É entrar a agulha e a coragem sair. Pior seria cair dura no chão, estatelada feito um saco de batatas, então já chego pedindo pela cadeira dos medrosos e lá fico até voltar a ter cor. Nem adianta tirar os óculos.

Sempre fico um pouco na dúvida se a visão cada dia pior é um sintoma da velhice ou uma forma do meu corpo de me proteger de um mundo cada dia mais duro.

Infelizmente, coloco óculos e leio jornais. Um erro.

Astigmática há mais de 40 anos, existem dois mundos: o que vejo ao colocar os óculos e aquele que me garantem estar lá nos outros momentos. Claro, tem coisas que não enxergo nem mesmo com as lentes corretas. Algumas, confesso, por escolha. As outras, por distração.

Ainda pensando nas duas crianças, lembro de tantas outras duplas. Casais, colegas de trabalho, vizinhos, irmãos. Próximos e distantes. Convivem diariamente e não se conhecem. Todos os clichês, mas nem por isso menos verdadeiros.

Apresso o passo do retorno. Nina deve estar sofrendo com os fogos e não quero que fique sozinha.

No caminho de volta, vejo que a vítima está consciente e se sentou. Uma metáfora, espero, de Brasil.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho