Nina Simone tem todo um devir gato. No frio, dorme embaixo das cobertas. Pega sol no sofá. Limpa os olhos sozinha. Dorme no centro absoluto da cama, alimentando a indústria dos analgésicos e anti-inflamatórios para a humana que dorme nas posições possíveis ao seu redor.
É tão fofo que, apesar de odiar o frio, cogito uma mudança para Helsinque, Bucareste, Oymyakon, Dudinka, Ulaanbaatar, Curitiba, uma insanidade gelada qualquer dessas.
Tem vezes que olho para Nina e fico esperando um miado.
Hoje, oito do oito, é aniversário de filho. E o meu devir gato bate forte. Ficar na coberta vendo filme, comendo pipoca, sem hora para levantar, sem boleto para assombrar. Gato ou rica, os dois funcionam. Infelizmente, os dois são igualmente prováveis.
A ideia de um dia acordar gato lembra, obviamente, de Kafka e sua barata. O que, por sua vez, me lembra de Ian McEwan, que escreveu um livro hilário sobre uma barata que acorda como o primeiro-ministro da Grã-Bretanha.
Naquela manhã, Jim Sams, inteligente mas de forma alguma profundo, acordou de um sonho inquieto e se viu transformado numa criatura gigantesca.
O Luis Fernando Veríssimo tem também uma crônica de uma barata que vira humana e depois vira barata de novo. Vandirene nasce e morre barata. Talvez um pouco determinista, não sei.
A ideia da paródia inversa de A metamorfose não é nova. Haruki Mirakami também a explora, em Samsa apaixonado. O conto foi publicado na coletânea Homens sem mulheres (2014).
Nessa linha, recomendo muitíssimo também a versão em mangá para a série pocket da L&PM (2013).
O cartunista Robert Crumb incluiu a história da barata na sua biografia ilustrada de Kafka (Totem, 1993).
Meus alunos me informaram que há também uma aparição no videogame Resident Evil: Revelations 2, mas confesso que não compreendi exatamente qual.
De todas, a versão em quadrinhos de Peter Kuper (Conrad, 2010) é a minha favorita.
Toda o conceito da metamorfose é fascinante. Sofremos, nós, muitas durante a vida mas, por não ganharmos lindas asas coloridas, não as percebemos.
Naturalmente movida pelo envelhecimento visível, penso na minha biografia. Que conste de meu epitáfio: “não foi de tédio”. Essa, na verdade, é uma frase de alguém com uma vida igualmente turbulenta. Essa pessoa já morreu, tem tempos. Não foi esse seu epitáfio, então me sinto livre para roubá-lo.
Nina faz festa para a chegada de filho, como sempre. São os afetos que atribuem sentido à vida.
Se, na próxima encarnação, eu não voltar gato vai ser uma sacanagem e eu vou querer meu dinheiro de volta.