As aulas de francês recomeçaram e, com elas, a censura silenciosa de Nina. Levanto cedo, faço café e sento no computador. As aulas são online.
Nina me olha com grande desconfiança. Mamãe ficou maluca. Ela fala coisas incompreensíveis com a tela do computador.
Nina se recusa a compreender o que leva um humano escolher fazer uma insanidade dessas quando poderia estar, sei lá, passeando com um cachorro, por exemplo.
Olho pela janela para ver se a chuva parou.
Lá fora, do outro lado da rua, a barraca de camping.
Penso no cachorro da crônica A menina e o cão triste, de Rogério Pereira, e decido separar uns livros infantis para dar para o filho dos moradores de rua aqui da frente. A família vive naquela barraca de camping, ali na frente, logo ali, vejo daqui. Tão perto e tão longe.
Não faço ideia se ele sabe ler. É pequeno e malandro. Não sei que idade tem. Nunca estou por aqui no horário em que o menino deveria estar na escola e ele fica mais com os avós, em algum outro lugar que não aqui. Sei pouco do menino.
Tenho cá minhas dúvidas sobre o sucesso da iniciativa mas, sob a inegável influência do Rogério, decido tentar.
Por sorte, tenho um bom relacionamento com os pais. Nos conhecemos. Somos vizinhos. Eles também têm cachorros e gostam da Nina. Levo Nina como um cartão de visitas. Funciona. Sou bem recebida.
O menino sabe ler mas não gosta, me diz sua mãe.
Fico em dúvida se é o menino que não gosta de ler ou se são os pais. Normalmente são os pais. É a mesma coisa com comer legumes, por exemplo. Os pais não gostam, então não fazem, a criança não se habitua, cresce desgostando de algo que nunca experimentou.
Insisto.
Digo, olha, esses aqui são meus, olha o desenho do cachorro… O menino se interessa. Pergunta se é a Nina. Não, não é, eu é que sou uma pessoa pouco criativa e tenho cachorros parecidos. O modelo desse cachorro do livro foi a Fiona, que morreu, bem velhinha, no final de 2021.
Engrenamos na conversa. O menino conta de um cachorro que perdeu.
Eu lanço a ideia: quem sabe você não o encontra em um livro?
Ele sorri.
De repente, de uma hora para outra, a vida faz algum sentido.
O Rogério que habita em mim saúda o Rogério que habita em todos nós e nasce um novo leitor.
Vou embora escondendo o choro.