Crônicas do estranhamento (3)

O apego à leitura e o amor aos cachorros são duas marcas visíveis nas ruas de Paris
Ilustração: Carolina Vigna
16/01/2025

O termômetro do lado de fora da janela mostra -5º C e pela manhã caiu uma chuva de granizo. Apesar dessa realidade inóspita, acabou o café. É uma situação crítica, que exige atitudes dramáticas. Saio de casa e vou ao mercadinho aqui do lado. O mesmo de sempre, que vou toda hora pois preguiça.

O mercado é de bairro, pequeno. As aleias são apertadas. Uma família de norte-americanos composta por papai, mamãe e casal de lírios dourados adolescentes estão comprando batatas chip, cerveja e coca-cola. Para a tarefa, ocupam o corredor inteiro. Peço licença para passar. Just a moment, bem arrogante. Estou cansada, com frio e no meio de um texto importante, com pressa para voltar. Empurro aquela cesta dublê de carrinho com o pé. O pai reclama how rude. Como dizem os locais, j’ai flippé. Falei que rude e ill-educated eram eles. Vi o caixa sorrir pela primeira vez. No final da compra, ele agradeceu como sempre fez e completou Ce que tu as fait, c’était super sympa. Algo como foi super legal o que você fez.

A cada dia que passo nessa cidade compreendo melhor o ódio que o parisiense tem com os gringos. Em sua esmagadora maioria, são barulhentos, mal-educados, não respeitam o espaço do outro e tratam as pessoas feito lixo.

Fui almoçar fora. Do meu lado, uma mesa com uma mãe, uma avó e duas crianças. A adolescente não tirou os olhos do celular um único minuto. A mais nova gritou, se jogou no chão, enfiou uma batata frita no nariz, jogou comida no chão, bateu na mesa, espalhou ketchup na mão e limpou com o guardanapo de tecido e tomou cinco, sim, cinco, refrigerantes de 330 ml. Sou ruim de conta, mas dá mais do que um litro e meio de gás e açúcar. A cena parecia extraída de uma sitcom de tão caricata. Precisariam ter deixado uma indenização. Não deixaram nem gorjeta.

Fui ao cinema ver o filho bastardo de Shakespeare com o Expressionismo alemão, Nosferatu. Filme lindo. Se você gosta de fotografia, veja. Atrás de mim, duas amigas falando em inglês. Chutavam a cadeira o tempo todo. Pedi para parar uma, duas vezes. O filme ainda não tinha começado, mas o cinema estava claramente vazio, mudei de lugar. Riram. Fui para o lugar mais distante que consegui. Sentei do lado de um cidadão lendo um livro durante os trailers. Tentei descobrir o que ele estava lendo, mas rapidamente o filme começou e ele guardou o livro na mochila. Estou curiosa até agora.

A relação com leitura é uma coisa que essa cidade tem de bom. A outra é que cachorros entram em qualquer lugar. Inclusive restaurantes, farmácias, mercados, metrô.

Tem uma loja de sucos aqui que eu adoro, Le Paradis du Fruit. Costumo ir no mesmo horário que uma moça e seu cachorro. Já nos encontramos várias vezes. O cachorro se chama Dostoiévski. Nem preciso dizer que é um Scottish Terrier, né? Quando eu ri, a moça contou que na verdade ela deu o nome de Fiódor mas que todos os amigos dela, de brincadeira, só o chamavam de Dostoiévski e agora o cachorro não atende mais por Fiódor. Não faço a mais vaga ideia de como seja o nome de moça, mas gosto dela. E do cachorro dela. E dos amigos dela.

Na Paradis tem um sistema de fila na entrada com uma plaquinha, escrita em francês e em inglês, pedindo que as pessoas esperem ali que alguém já virá atender. Estou em pé, parada, esperando. Chega uma mulher. Ela olha para mim, para, lê a placa e decide simplesmente entrar e sentar em qualquer lugar. Chama o atendente como quem chama um cachorro sarnento. Em inglês, é óbvio.

Não que fosse um passo tão grande assim para mim, mas vou sair daqui odiando gringo.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho