Crônicas do estranhamento (1)

A primeira crônica de uma séria de oito textos sobre a vida entre estudos e trabalhos na capital francesa
Ilustração: Carolina Vigna
02/01/2025

Ando na avenida como se fosse turista. Já não fui, hoje sou. Como já não fui, nunca mais serei. Mas sou. Ando na avenida como turista.

Um senhor me pede orientações. Eu respondo. Jamais saberemos onde essa pobre alma foi parar. Já não sou a pessoa mais indicada para a tarefa no país onde nasci, na cidade que escolhi, no bairro onde moro, que dirá aqui.

O feirante sabe o meu nome. Eu sei o dele, mas é impronunciável. Decidi parar de ofendê-lo ao tentar chamá-lo pelo nome. Desisti. Vou de Bonjour Monsieur e está bom.

Faz frio, não gosto, sou turista. Nasci num país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza. Cadê meu sol quentinho, socorro. Odeio frio.

Entrei em uma loja de materiais de arte e comprei apenas o que precisava. Quero uma estátua na praça pelo autocontrole. Nunca mais posso voltar lá. Não serei capaz de repetir esse feito hercúleo.

Nina ia odiar isso aqui. As pessoas não fazem carinho nos cachorros de completos estranhos na rua. Não param e oooooh cafuné. Nada. Tratam como se fosse gente, de quem, obviamente, todo mundo quer distância.

Numa mesa redonda, um cidadão diz que, para ele, não existe exterior. O que me leva a concluir que tampouco existe interior. Nada lá dentro da cachola. Acho que era para ser humor. A ironia se perdeu em mim.

Já sei que tem três coisas de que sentirei falta ao voltar para casa: o preço dos cogumelos, beber água da torneira e metrô com trens frequentes. Certamente acumularei outras, mas por enquanto é meio que isso.

Na rua, vejo uma sósia da Nina. Não resisti e me aproximei. Achei que a mulher fosse chamar a polícia. Aí comecei a falar em português com a cachorra que, obviamente, entendeu tudo. Cachorros são muito espertos. A mulher então compreendeu que eu não ia lhe roubar a cachorra (bem, errr…) e sim apenas uma turista louca. Poucas vezes na minha vida eu vi uma pessoa tão sem graça. A cachorra não, a cachorra era linda. Se vocês lerem no jornal “brasileira presa por perseguir cachorros na rua” é porque eu preciso de ajuda, façam alguma coisa, send help.

Junto com toda essa empreitada artística-acadêmica, entrei em outra há muito devida a mim mesma. Vou me vestir melhor. Depois de 54 anos de calça jeans manchada de tinta, camiseta velha e tênis vagabundo, decidi que Paris era o lugar para fazer essa mudança.

Adorei ter a confirmação de que as mulheres mais elegantes, com mais classe e bom gosto, acham que roupa que estampa a grife é cafona. Sabe aquele casaco de trocentos mil dinheiros com a marca “legítima” estampada? Cafona. Sabe aquele tênis que custa um rim? Quanto mais caro, mais cafona. Pelo menos em uma coisa na vida, meus instintos estavam certos. Sempre achei brega, mas agora posso falar isso em voz alta.

Até o presente momento, comprei uma bota e joguei fora a velha, que trouxe exatamente com essa intenção.

Vou mantendo vocês informados.

PS. Estou em Paris por conta do meu segundo pós-doc e de uma exposição individual. O nerd em mim saúda o nerd em você. Com isso, até voltar, escreverei sobre esse estar no mundo muito particular. É uma enorme conquista e a realização de um sonho, mas como em qualquer situação de vida, nessa também, nem tudo são flores. Estou estudando e trabalhando feito uma doida, passando frio e saudades e precisando viver em outra moeda. Então, vamos que vamos.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho