Clichês somos todos

A importância de repetir algumas coisas até enjoar, até extirpar todo o medo de parecer ridículo
Ilustração: Thiago Lucas
15/02/2024

No filme Todo mundo ama Jeanne (direção de Céline Devaux, 2022) tem algumas cenas sobre esvaziar o apartamento da mãe falecida e todas as memórias e surpresas que essa ação acarreta. Foi estranho “me ver” de fora, com o olhar do outro. Acho que é dessas coisas absolutamente íntimas, mas que acontecem com tanta gente que se tornam um clichê.

Eu herdei da minha mãe um clichê com uma ilustração do Fernando Pessoa. Era de um dos jornais onde ela trabalhou no começo da carreira. Ela me contou que achou no lixo e pegou.

Clichê, caso você não saiba, é o nome que recebiam as gravuras de imagens que eram reutilizadas, na época da prensa tipográfica. A gente compunha a página com as letrinhas (tipos móveis) no caixilho (um enquadramento que segurava tudo no lugar) e, quando precisava ilustrar alguém recorrente, como o Fernando Pessoa, usava uma imagem já pronta chamada clichê. Depois, clichê virou sinônimo de qualquer coisa que se repete, não apenas imagens em um jornal. Hoje, algo que se repetiu tanto que se torna ridículo.

Adoro o clichê do Pessoa. Tenho um outro também, de uma tirinha. Não sei a origem desse, mas veio na mesma herança.

Qual a diferença entre se tornar um padrão ou um clichê? Não sei. Talvez o senso de ridículo.

Os pensamentos de Jeanne, a moça do filme, são pequenas animações e dão toda a graça ao longa pertencente à grande categoria poderia-ser-um-curta.

Quando precisei esvaziar o apartamento de S., não conseguia ficar lá dentro. Então, adotei a estratégia de passar rapidamente pelas coisas e ver o que eu queria guardar de lembrança. Chamei os amigos dela para que fizessem o mesmo. E então doei tudo. Absolutamente tudo. Encosta o caminhão aí e leva, moço. Não consegui fazer diferente. Teria sido bom conseguir.

No apartamento de S. tinha 28 maços de cigarro fechados, dois abertos; 72 garrafas de vinho fechadas, uma aberta; metade de um queijo; uma garrafa d’água; um pacote aberto de nozes; pó e filtro de café; um vidro com alguns biscoitos dentro. De uma certa forma, é um pouco surpreendente que tenha chegado aos 79 anos de idade. S. era vegetariana e macrobiótica. E, obviamente, incoerente, pois fumava e bebia feito um marinheiro. Me encheu o saco a vida inteira para me alimentar melhor. O que não conseguiu em vida, conseguiu depois.

No filme praticamente só as crianças não fumam. É muito impressionante como a Europa, especialmente a França, ainda é um lugar de fumantes. Eles sobem a correnteza e vão se reproduzir em Paris, me parece.

Saio da sessão de cinema com S. na cabeça.

Espero ser uma pessoa melhor e mais interessante que a protagonista, mas me vi em Jeanne quando ela encontra os recortes a seu respeito, guardados pela mãe. O que choca, às vezes, é o carinho que não foi dito, que foi omitido, que foi censurado por toda uma vida.

Lembro até hoje da minha absoluta surpresa quando encontrei uma foto minha, em um porta-retratos, na casa de E. Ela morreu eu devia ter uns 15, 16 anos, eu acho. Entrei na casa por companhia, sem ter sobre os meus ombros responsabilidade alguma ali. Me deparei com essa foto minha no porta-retratos do lado de outros muitos porta-retratos com fotos de quem eu esperava encontrar ali. No meio, misturada entre todas as pessoas que eu sabia lhe serem queridas, eu. Fiquei paralisada, segurando o objeto na mão, sem ter ideia do que fazer com aquilo. Eu tinha certeza de que ela não gostava de mim. Muito teria sido diferente se E. fosse uma pessoa capaz de expressar afeto.

São duas da manhã e escrevo “eu te amo” para o meu filho. É importante que ele tenha certeza do meu amor. É importante repetir isso até ele enjoar. É importante que isso seja um clichê entre nós dois.

O medo do ridículo precisa ser assassinado a tiros.

Meu próximo passo é comprar um vestido tie-dye e um sombrero.

Me aguardem.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho