Cela n’est rien

Agosto atropela em afazeres, lapsos e cansaço; entre memórias confusas e humor afiado, resta apenas computar o caos da vida
Ilustração: José Lucas Queiroz
21/08/2025

Agosto me atingiu no atropelo, a contrapelo e sem apelo. Até Nina Simone está tonta com a quantidade de afazeres. Nem é tanto a quantidade: é a mudança brusca de assunto a cada segundo.

Pensar em questões domésticas, por exemplo, junto com artigo acadêmico, aula, exposição, estudos, livro, mídia social, viagem, veterinário, elevador parado, burocracia e sei lá mais o quê dá um overflow no cérebro. O meu está entrando em shutdown lá pelas 18h, 19h.

Quarenta anos atrás, em 1985, o grupo musical Eletrodomésticos lançou Choveu no meu chip. É exatamente como me sinto. Não posso mais computar.

Não estou fazendo as coisas exatamente de má vontade. Vontade eu tenho. Os franceses têm uma expressão bonitinha, à contrecœur, que é algo como contra o coração. É um pouco mais sutil que contra vontade. É mais próximo de com alguma relutância. É isso. Ando relutante. Ando contrecœur com a vida.

Contrecœur, contrafilé. Potato, potato. Mr. Potato Head.

É difícil viver aqui dentro desse trem descarrilado.

Fui de carro para o trabalho. Esqueci. Voltei de metrô. Lembrei. Voltei para pegar o carro. O pior é que nem é a primeira vez que faço isso.

Queimei o tostex. Gente. Tostex. Cozinha para idiotas.

Saio do elevador — em minha defesa, em um prédio onde não costumo dar aula — e não lembro para que lado ir. Escolho o errado, obviamente.

A professora de pilates precisa me explicar umas noventa vezes o exercício. Ela me olha com condescendência. Deve me achar o ser humano mais burro do planeta. Não a culpo.
Chuck Berry começa a tocar. O modo aleatório das músicas reflete bem as minhas capacidades cognitivas no momento. Eu começo a cantar, para desespero de Nina: Cest la vie, say the old folks; It goes to show you never can tell.

Quase meia-noite, um frio horroroso, lembro que não levei a coitada da Nina ao parque hoje. Ela parece conformada, já que dorme placidamente sob as cobertas, na cama. Não consigo me lembrar se almocei, mas estou com fome. Estou mais cansada do que com fome. E estou com mais frio do que cansada. Faço a escolha sensata e me junto à Nina.

Realmente não posso mais computar.

Tout va très bien, Madame la Marquise.

Cela n’est rien. Isso não é nada.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho