Burrices naturais

O grande dilema é que a IA só funciona para quem tem alguma inteligência natural; o conforto da idiotia é muito sedutor
Ilustração: Bruno Schier
04/04/2024

Gasto meu feriado corrigindo provas. Tudo bem, faz parte. O cansaço toma conta. Não tem um único colega com quem eu converse que não esteja exausto também. Às vezes acho que a vida do professor é uma eterna divisão entre querer uma metodologia mais fácil e rápida de avaliação e a noção de que a escrita à mão e a leitura em papel são melhores para o processo de aprendizado.

Muito tem se falado na inteligência artificial dos GPTs da vida. O grande dilema é que a IA só funciona para quem tem alguma inteligência natural. Existe uma citação conhecida do Einstein, em que ele diz “se tivesse uma hora para resolver um problema e minha vida dependesse dessa solução, eu passaria 55 minutos definindo a pergunta certa a se fazer. Porque se eu soubesse a pergunta correta, poderia resolver o problema em menos de cinco minutos”.

E esse é o ponto forte e, ao mesmo tempo, o fraco das IAs. Se você sabe formular a pergunta, tem condições plenas de resolver a questão sozinho e a IA é um substituto para o trabalho braçal. Se você não sabe formular a pergunta, amigo, não tem quem te dê uma resposta que preste, sinto muito.

Atribuir o apocalipse cognitivo que estamos vivendo à tecnologia é uma resposta fácil mas, no mínimo, incompleta. Em mais uma citação, a última, prometo, o Darcy Ribeiro estava certo: “a crise da educação no Brasil não é uma crise; é projeto”. É sempre projeto, Brasil ou não. A burrice galopante interessa a quem? Follow the money e fica fácil de descobrir.

Sempre fico impressionada com os NPCs que encontro pela vida. Sou professora e não acredito que alguém seja incapaz de aprender. Acredito, entretanto, que existem pessoas que não desejam aprender. O conforto da idiotia é muito sedutor.

Hoje, Nina e eu fomos paradas por três jovens na entrada do parque. Alunos de alguma coisa que eu não prestei atenção. Queriam saber se eu podia responder a algumas perguntas sobre saúde pública. Nina se interessou por um arbusto e então concordamos. Uma das perguntas era sobre o Plano Nacional de Saúde. Respondi que de uma forma geral, mesmo quando a política não me favorece, eu concordo com o planejamento da Saúde e do SUS. Citei como exemplo a vacina contra dengue. Vai demorar para chegar na minha faixa etária e no centro de São Paulo, mas eu também acho que crianças primeiro, etc. Os jovens pareceram satisfeitos com as minhas respostas e foram embora. Nina também cansou do matinho onde estava e continuamos o passeio.

Passamos de propósito pela cabine da vigia, para dar um alô. É uma moça gentil que herda livros que eu considero de leitura única e não guardo. Veio me contar que um dos livros que ela ganhou — o Veado assassino, do Santiago Nazarian — já passou por ela, depois pela filha mais velha, uma avó de alguém, um vizinho e o zelador do prédio onde mora. Não consigo pensar em um destino mais digno a um livro. Esse é o motivo pelo qual prefiro o livro impresso. O livro impresso caminha.

Na volta, encontro com o grupo novamente. Escuto a resposta da outra pessoa. Algo como esse governo, bananão, petralha e sei lá mais o quê. É o discurso fácil do ódio, do eu-primeiro, da desinformação. A cara de tristeza dos entrevistadores dava dó.

Nina e eu nos afastamos.

Temos medo dos raivosos.

Vamos para longe.

Ainda bem que nesse parque tem bastante matinho para cheirar e bancos ao sol para sentar.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho