Almofadas

Só importam os músicos, os escritores, os artistas, os loucos; o resto é figurante no espetáculo circense em que os jornais se transformaram
Ilustração: FP Rodrigues
21/03/2024

As notícias recentes parecem querer demonstrar de uma forma muito didática que o jornalismo generalista virou, realmente, entretenimento.

Acompanho com entusiasmo as operações da Polícia Federal. Já tenho uma cerveja gelada na geladeira, esperando o momento do brinde.

Descubro, boquiaberta, que uma pobre senhora carregou um feto calcificado por 56 anos dentro de si. Vou ter pesadelos por meses.

Nem preciso ler para saber sobre os extremos de calor.

Pulo um monte de notícias sobre pessoas que eu não sei quem são mas já sei que não me interessam. Fulano fez as pazes com sicrano. Legal (= dane-se).

Não ligo para o que o artista pediu em seu camarim. Se fizer boa música e o pedido estiver dentro da legalidade local, isso é mais um caso de não-dou-a-mínima.

Leio com atenção sobre o quinto mandato do Putin. Me divirto com o Le Monde, que escreve “Vladimir Poutine”, principalmente porque entendo o motivo. Putin, em francês, é um palavrão/xingamento. Então escrevem o mais próximo possível. É uma forma bastante respeitosa de tratar o czar-wannabe russo. Eu teria chamado de Putin mesmo.

Clico conscientemente no bait sobre o sumiço da Kate e não dou a mínima para o Charles. Para mim, o único rei-ray Charles importante para a humanidade foi um pianista cego. Nina Simone, é claro, concorda comigo. Só os músicos, os escritores, os artistas, os loucos importam. O resto é figurante nesse espetáculo circense em que os jornais se transformaram.

Um amigo querido visita São Paulo. Mora no Acre que, um dia, hei de conhecer. Vou dar uma volta com ele e acabamos no parque onde passeio diariamente com a Nina. Ao voltar para casa, descubro que Senhorita Simone havia comido uma almofada. Ninguém vai me convencer de isso não foi uma retaliação pela traição que, de alguma maneira, ela descobriu. Se considerarmos que ela já destruiu dois sofás inteiros, pelo menos está ficando mais barato.

A minha lista de afazeres cresce em proporção inversa à minha vontade de executar as tarefas pendentes. Decido então, é claro, assistir a um filme. Sou assinante da Imovision e escolho aleatoriamente. São sempre bons filmes, nem me dou o trabalho de ler o tijolinho. Clico em A dona do barato e passo 104 minutos me divertindo horrores. Recomendo. Infelizmente agora estou 104 minutos atrasada nas coisas que preciso fazer.

O calor não me permite ser a pessoa prática e objetiva que sempre fui. Consequentemente, faço a única coisa lógica possível: vou passear com Nina. O que são mais algumas horas para quem já está tão atrasada com tudo, não é mesmo?

Se alguém perguntar, não estou procrastinando, não, que absurdo, não sei do que vocês estão falando.

Estou apenas tentando salvar minhas almofadas.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho