Além da poeira

Entre lembranças empoeiradas e fitas antigas, a faxina revela memórias, escolhas e afetos que sobrevivem além da poeira
Ilustração: Carolina Vigna
28/08/2025

Faxina para além da poeira. Daquele tipo de abrir cada pasta, cada caderninho perdido de anotações, cada caixa de papelão. Vou ter rinite até 2034.

Encontrei minhas anotações de uma série de palestras que assisti sobre o mercado editorial, em 2004, na ESPM do Rio. Mais de 20 anos se passaram. Minha memória é falha e o tempo, implacável. Não me lembro do que grande parte dessas notas queriam dizer. Acho mesmo que não importa. Li e joguei fora.

Li e joguei fora quase tudo que encontrei pela frente.

Eu consegui, durante toda a minha vida, fazer sempre as piores escolhas financeiras possíveis. Mercado editorial, docência e artes. Sei que, à primeira vista, pode não parecer, mas eu, sim, gosto de dinheiro.

Olho para a minha estante e, de vez em quando, entendo minha mãe. Teve um belo dia em que ela se desfez dos seus livros, mantendo apenas alguns de portfólio. Botou orquídeas no lugar. Era uma estante de orquídeas.

Eu não gosto de orquídeas.

Mas eu entendo. De vez em quando dá uma gastura de tudo.

Sei lá, abrir um pet shop.

Respiro e vou para outro setor da estante.

Fitas de vídeo. Ó, senhor, nem lembro quando foi que me desfiz do último tocador de VHS. Tem tanto tempo que nem lembro como chamava. VHS player? Videoplayer? Tocador de fita. Vhscoisa.

Junto, fitas BetaCam. Sim, eu sou velha assim. Mandei digitalizar. E depois jogar fora.

Nas BetaCam, pedaços e registros estranhos de um programa de televisão que eu tive (escrevi, produzi e apresentei). O programa se chamava Cyber Café: o programa light para heavy users. Na época, isso ainda fazia algum sentido. Passou em um canal obscuro da TV a cabo durante uns poucos meses de 1997-98.

Das fitas VHS que, felizmente, estavam rotuladas, separei apenas uma para digitalização: a do primeiro ultrassom da gestação do meu filho. As outras fitas foram para o lixo sem dó. Recuperei o exato momento em que ouvi o coração dele bater pela primeira vez. Ele nasceu sete meses depois.

A vida pode ser bonita.

A vida pode ir bem além da poeira.

Ou de orquídeas.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho