A sela

A cronista sonhou com inúmeras profissões, de inventora a bióloga marinha, mas acabou mesmo abraçada às artes plásticas e à literatura
Ilustração: FP Rodrigues
24/07/2025

Um amigo de longa data me mandou o link de um vídeo sobre a Mercearia Paraopeba. Imediatamente me lembrei da vendinha que frequentávamos quando eu era criança. Era dessas bem típicas, que vendia cola, caderno, cigarro, castanhas, carrinho, caqui, carambola, cachaça, cachimbo, charuto, caixa, coleira, caibro, chapisco, cavilha, cereal, cuscuz, carniça, canjica, chicote, canivete, chinelo, chapéu de palha, chave de fenda e carne. C de Carolina.

Ou, para mudar de letra: manga, meia, mostarda, mortadela, milho, mandioca, massa corrida, mocotó, mel, marmelo, mariola, machado, madeira, martelo, maçarico e maiô.

Paçoca, pitanga, peteca, parafuso, pamonha, pedra britada, prumo, pá, peneira, pé de cabra, pastel, pesticida, pipa e pé de moleque.

Tinha também rapadura, rede, rédea, rádio, régua, repelente, reboco, rodo e remédio contra carrapato.

Eu ia no banco de trás do Fusca marrom, animadíssima. Reza a lenda que não era preciso muito para eu ficar animadíssima. Minha mãe dizia que, se me perguntassem “como vai?”, minha resposta era: “vou sim”. Pouca coisa mudou, parece.

No fundo da lojinha, havia umas caixas de papel pequenas, numeradas, que eram assunto proibido. Até hoje não sei o que eram.

Era chegando no S que meu olhar se perdia. Logo na entrada, havia sempre umas selas de couro penduradas — trabalhadas, decoradas, lindíssimas. E inalcançáveis. Menina da cidade, nunca me tornei a amazona que meus sonhos infantis pediram.

Também já quis ser inventora. Achava que isso era uma profissão. Trabalharia em um enorme laboratório particular, onde ninguém poderia entrar, naturalmente. E lá eu inventaria as mais malucas — porém úteis — coisas. Lembro até hoje de uma: um tênis autolimpante. Não cheguei a desenvolver o projeto, então infelizmente não tenho como compartilhar, mas me parecia um inequívoco sucesso.

Depois da fase inventora, pensei em Oceanografia, Arquitetura e Filosofia. Em seguida, quis ser tradutora da ONU ou cartógrafa.

Um pouco mais velha, cogitei cursar Farmácia ou Química. Os laboratórios sempre me atraíram bastante. Ainda gosto, cá entre nós.

Acabei entrando em uma faculdade de Biologia, que não terminei. O motivo era outro: eu queria ser o Jacques Cousteau de saia, me especializar em Biologia Marinha e sair navegando pelos mares mundo afora. Cabelos ao vento — aquela coisa bem romântica. Na falta de um cavalo, servia um barco.

Uma pessoa de enorme coerência e constância, como vocês podem observar.

Os interesses eram — e são — múltiplos. A cabeça continua nas nuvens.

Sementeira, sabiá, sonho, sanhaço, saia, sapo, saracura, serra, serrote, sítio, samambaia, sopa, sálvia, saxofone, sanfona, sardinha, sabonete. E eu cá em Sumpaulo: sono picado, estresse e nada de sela.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho