Naquela noite, a mesa estava posta com solenidade incomum. Toalha branca passada a ferro, castiçais de prata herdados da avó peruana e um aroma que misturava alecrim, legumes assados e um leve perfume almiscarado vindo do forno. Era a ceia de Natal dos perus.
O patriarca, seu Perúcio, limpou o bico no guardanapo e anunciou com alegria: “Bem, família, antes de servirmos a ceia, vamos agradecer por mais um ano de abundância e concórdia na gaiola”. Todos inclinaram a cabeça, respeitosos.
Na cozinha, dona Perusina supervisionava com minúcia o preparo do assado. Um belo exemplar humano, criado solto em quitinete, alimentado à base de fast food e estresse corporativo. “Não pode passar do ponto”, alertou a perua. “Gente seca estraga qualquer ceia.” Recheou-o com farofa, castanhas portuguesas e uma maçã na boca, pois tradição é tradição.
As crianças-peru corriam em volta da mesa, ansiosas pelos presentes. Ansiavam por camisetas da seleção do Peru, penas novas e, claro, pelo momento de puxar a clavícula da sorte, um ossinho humano disputado com a mesma fé cega que, em outras épocas, se depositava em ossos de aves natalinas. Quem ganhasse faria um pedido: geralmente algo modesto, como um mundo com menos Roberto Carlos e mais empatia.
O tio Perugo, sempre muito politizado e com o bico molhado de bourbon Wild Turkey, aproveitou para discursar: “Era curioso como eles nos chamavam de refeição com tanta naturalidade. Diziam ‘é só um peru’. Agora vejam na travessa: é só um humano.” Houve glu-glus de concordância, acompanhados de goles de vinho tinto encorpado, ótimo para harmonizar com carne maturada de classe média.
Quando o prato principal chegou à mesa, dourado e reluzente, houve aplausos entusiasmados. Seu Perúcio trinchou com habilidade, comentando sobre a textura da pele e o sabor levemente agridoce da carne. “Criado em condomínio”, explicou, “isso dá um toque especial.”
Durante a refeição, falaram do clima, do aumento do milho e de como o Natal anda cada vez mais comercial. Alguém comentou que os humanos antigamente se reuniam naquela noite para comer perus. Riram com educação, achando graça nessas tradições exóticas do passado.
Ao final, trocaram abraços, prometeram ser melhores no próximo ano e guardaram as sobras na geladeira. Afinal, humano requentado no dia seguinte fica uma verdadeira delícia.
E assim, com a mais absoluta normalidade, os perus celebraram mais um Natal: agradecidos, saciados e certos de que o mundo, visto de qualquer ângulo, sempre foi absurdo.