Hoje eu levantei da cama, tomei meu café
Dei um beijo nas criança, eu coisei com a muié
Tudo isso foi de graça, irmão
As coisas boas são de graça, irmão
A vida é de boa, não preciso de muito pra ser feliz, não
Só preciso de um dinheiro pra comprar um mé
O leitin das criança e o Modess da muié
O resto é só fé, só fé, só fé
O resto é só fé, só fé, só fé
Só preciso de um dinheiro pra comprar um mé
O leitin das criança e o Modess da muié
O resto é só fé, só fé, só fé
O resto é só fé, só fé, só fé
(Só fé, por Grelo)
Ao adentrarmos o universo poético da canção Só fé, do cantor e compositor Grelo, somos confrontados com o paradoxo entre o trivial e o transcendente. A partir da aparente banalidade do protagonista, que narra sua rotina de forma quase monótona, emerge um tecido intertextual que nos remete não apenas ao desespero modernista de T. S. Eliot, mas também às contribuições de Ezra Pound, James Joyce, Marcel Proust, Umberto Eco e Rita Cadillac.
O início da canção, com seu “levantei da cama, tomei meu café” é um eco dos devaneios de Leopold Bloom em Ulysses, de Joyce. Aqui, o narrador, como Bloom, se encontra em um espaço de trânsito entre a mundanidade e o questionamento existencial. Ambos, o homem comum da canção e o herói joyceano, revelam-se como sujeitos fragmentados, cuja narrativa pessoal se constrói a partir de gestos banais e desconexos. O beijo nas crianças e o “coisar com a muié” funcionam como atos automáticos, um tipo de stream of consciousness que, como em Joyce, oculta camadas profundas de alienação e desespero.
Ezra Pound, com sua busca incessante pela condensação poética e pelo significado lacônico, poderia ver no refrão “Só fé, só fé, só fé” um exemplo de melopeia imagista. O mantra repetido não apenas ressoa com o vazio espiritual, mas funciona como uma tentativa quase desesperada de encontrar ordem em um universo fragmentado.
A menção ao “dinheiro pra comprar um mé” e o “leitin das criança” coloca o personagem em uma espiral temporal que evoca Marcel Proust. A necessidade de manter os filhos nutridos e a mulher abastecida com produtos basilares — como o “Modess” — coloca o cotidiano numa dialética com o tempo. Aqui, encontramos o eixo proustiano da memória involuntária: enquanto o protagonista busca conforto nas necessidades básicas, está também tentando manter viva uma lembrança, uma sensação de controle sobre o caos do mundo exterior. Assim como a madeleine de Proust, o leite das crianças e o absorvente da companheira são vestígios do que outrora poderia ser uma vida plena, agora reduzida a uma economia simbólica de pequenos gestos.
Umberto Eco, em Obra aberta, discute como a multiplicidade de significados e a ambiguidade enriquecem a leitura de qualquer texto. Em Só fé, podemos ver essa abertura interpretativa em cada verso. A “fé” não é apenas religiosa; Eco poderia argumentar que seu uso é um jogo semiótico, no qual o narrador cria uma narrativa para justificar a precariedade de sua existência.
Finalmente, a menção a Rita Cadillac não pode ser ignorada. Se Eliot e Pound forneceram os alicerces da modernidade, Rita Cadillac personifica a contraparte pop e sensorial da cultura brasileira, especialmente no imaginário kitsch. Ao invocarmos Rita Cadillac, o gesto nos lembra que o sublime e o vulgar caminham lado a lado. O protagonista, preso entre a realidade brutal de sustentar sua família e o escapismo de um “mé”, encontra-se no mesmo espaço cultural onde Rita Cadillac, com sua persona excessiva e exuberante, desafia as convenções.
Portanto, Só fé não é apenas mais um muzak, mas uma rica tapeçaria de referências intertextuais. O protagonista transforma o ordinário em poesia, enquanto se afoga nas demandas da modernidade, e, como os personagens das grandes obras modernistas, está condenado a repetir suas ações de forma cíclica, enquanto a verdadeira essência da vida lhe escapa, resguardada em um “mé” barato, no “Modess da muié” e em orações de fé que talvez nunca sejam respondidas.
Ou, como apregoava Ludwig Wittgenstein: Wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen.