O sopro que falta

Num tempo engessado pelo bom-mocismo, o cronista irreverente ressurge como sopro necessário para reacender o humor livre e provocar a mudança
Ilustração: Marcelo Frazão
19/11/2025

Num tempo em que até piada precisa de manual de instruções, bula e QR code de consentimento, nunca se precisou tanto dele: o cronista pré-patrulha. O sujeito de ironia ligeira, sarcasmo ao ponto e uma leve tendência a irritar autoridades e vacas sagradas.

Esse cronista, caro leitor, era um especialista em rir com classe de tudo aquilo que hoje exige live, clube de leitura e mediação. Fazia mofa da crise, do preço do tomate, do ministro de bigode, da censura e até de si mesmo, quando se via obrigado a escrever uma crônica no domingo, com ressaca e sem assunto. E conseguia. Fazia do nada uma sátira, da dor uma anedota e do ridículo fazia o Brasil.

Mas aí o tempo passou. Veio a internet, os emojis, o coaching motivacional, o bolovo gourmet. E, com eles, uma nova forma de vigilância: a do bom-mocismo performático, do “olha como eu sou consciente”, do “antes de criticar, você considerou o impacto socioafetivo dessa piada nos aracnofóbicos?”.

De repente, a irreverência virou suspeita. E o humor, esse velho transgressor, foi algemado com palavras como “inadequado”, “desrespeitoso” e “multiculturalmente insensível”. Não que tudo isso não tenha valor — tem, sim. Mas vamos ser sinceros: uma piada com todas essas credenciais não arranca risada, arranca o laudo de falecimento do senso de humor.

E é aí, meus caros, que o cronista pré-patrulha precisa ressurgir das cinzas. Não como um salvador (ele tem alergia a essa função), mas como um sujeito que sopra. Sim, sopra uma frase torta, um parágrafo venenoso, um comentário que gera aquele sorrisinho de lado. E pronto: incendeia o ambiente. Porque hoje, nesse mundo estanque, é preciso de sopradores para levantar a poeira.

A caretice atual é tão engomada, tão esforçada em parecer elevada, que qualquer risada fora de hora é revolucionária. O sujeito que ousa gargalhar sem planilha de impacto social é imediatamente fichado: subversivo, perigoso, potencialmente engraçado. E o mais curioso: mesmo quem finge indignação às vezes ri escondido, porque fazer isso de algo proibido tem o mesmo sabor daquela cola escolar cheirada na infância. Todo mundo nega, mas o brilho no olho entrega.

O cronista pré-patrulha, portanto, não influencia por nostalgia. Ele motiva por contraste. Porque lembrar o que é o riso sem freio também é um ato político. Talvez o mais urgente de todos. Ainda mais para o momento atual.

E sejamos francos: num mundo em que todo mundo anda com extintor na mão, quem sabe soprar acende a fogueira da mudança.

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

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