O lírico brutal

Wander Piroli, o “lírico brutal”, expôs a crueza da vida em contos diretos e permanece injustamente esquecido no cenário literário
Wander Piroli, autor de “É proibido comer a grama”
08/10/2025

É abraçado ao esquecimento que, infelizmente, encontramos, até hoje, o escritor Wander Piroli. Chamado de João Antônio mineiro, foi um dos escritores que o mestre J.A., em nossas trocas de missivas nos anos 1990, mais me estimulou a conhecer. Juntamente com Luiz Vilela. Mas aí será assunto para outra crônica.

Piroli ganhou corpo naquela dita abertura política de 1974 — leia-se Ernesto Geisel. Por essa época, vários escritores que produziam na moita lograram lançar no mercado trabalhos inovadores em relação à literatura vigente no país. Eram textos realistas, quase documentais, que subvertiam o gênero e a forma reinantes. João Antônio, Wander Piroli, Ignácio de Loyola Brandão e muitos outros eram parte desse primeiro comboio que conseguiu furar o bloqueio criativo daquele momento.

Piroli foi um lírico brutal. Nunca poderíamos afirmar que engendrou charadas verbais. Seu modus operandi era uma marcha que seguia célere em direção à crueza da vida real. Como pode-se atestar numa célula do conto Assim ficou melhor para todo mundo. Nele, a violência física é resultado de uma desestruturação familiar. A filha é vítima de abandono e não tem acesso à educação formal. Grávida aos quatorze anos, a narradora é seduzida por um homem casado, pai de três filhos, e abandonada à própria sorte.

Tava lá experimentando o vestido, quando meu irmão Zé chegou e disse que pai tava batendo com a correia no meu neném. Ele tinha enchido a cara e falou que ia matar o menino. E mãe? Zé falou que mãe gritava no quintal, pedindo ajuda dos vizinhos. Fui na cozinha de vó e catei uma faca pontuda e saí correndo lá pra casa. Meu neném tava chorando no chão e mãe tentava segurar pai. Eu entrei e enfiei a faca em pai. Não sei quantas vezes. Enfiei a faca e ele foi caindo e eu fui enfiando a faca sem parar. Foi isso.

Uma das últimas menções que li a respeito de Wander Piroli é de 2011 e foi curiosamente levantada pelo ex-senador do Partido Democratas, Demóstenes Torres. Disse o político, em discurso na Câmara Alta, que a obra É proibido comer a grama, adotada pelo MEC na rede pública, era “sexista, machista e fascista”. Foi cassado semanas após essa exposição oral por quebra de decoro parlamentar. Não cabe citar aqui as verdadeiras razões de seu afastamento, mas Wander Piroli deve ter dado boas gargalhadas lá no mezanino.

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

Rascunho