O fracassado funcional

Cronista narra, com humor e melancolia, a vida de quem não “venceu”, mas guarda afeto, dignidade e pequenas alegrias
Ilustração: Italo Amatti
13/08/2025

Nunca comprei um Volvo. E não foi por falta de publicidade. Durante anos, o algoritmo jurou que eu era a cara de um SUV híbrido. “Aproveite agora”, dizia ele, “design escandinavo com a segurança de quem venceu na vida.” Pois bem: não venci. E cá estou, inteiro, com todos os ossos intactos e um Nissan Tiida 2011 que range quando se mexe.

Sou, com alguma honra, um fracassado funcional. Uma aberração estatística no mundo das TED Talks. Um homem que não prosperou, mas continua existindo com uma teimosia quase poética.

Eu tenho diploma. Em Comunicação, o que me qualifica para longos debates em mesas de bar e nada mais. Ele também me permite fazer revisão gramatical gratuita dos cartazes do bairro. Quando vejo um “vende-se salgados”, tremo. Mas sigo.

Trabalho, claro. Não muito, mas o bastante. Escrevo textos que ninguém lê, troco serviços por almoço e, um dia, fui pago com um pacote de feijão preto: o que considero minha mais honesta negociação profissional. Faturamento modesto, dignidade intacta.

Não subo na vida porque não vejo escada. Vejo uma esteira rolante no sentido oposto, cheia de executivos suados, segurando briefcases como se fossem crucifixos. Já eu caminho no acostamento da existência com um café frio na mão e um podcast sobre anarquismo no ouvido.

Moro de aluguel num apartamento que o corretor chamou de rústico, o que é o modo gentil de dizer que o imóvel tem o charme de um porão úmido. Ainda assim, gosto daqui. Tem sol de manhã e silêncio à noite.

Tenho família, sim. Mas montada como Lego fora da caixa. Um pedaço aqui, outro ali, alguns amigos que viraram irmãos, quatro filhos, uma porquinha-da-índia. Aos domingos, não tem carne assada, mas tem pão, afeto e discussões acaloradas sobre quem lavou a louça da última vez.

Nunca fui promovido. Nunca me deram um crachá com meu nome em fonte Arial 16. Mas fui elogiado por fazer um bom risoto. Já é alguma coisa.

No LinkedIn, meu perfil está estagnado, feito uma cápsula do tempo de um mundo que nunca me quis. “Proativo, comunicativo, apto ao trabalho em equipe”, diz o resumo. Tudo mentira. Eu trabalho melhor sozinho e, se for em equipe, só se ela respeitar meu mutismo.

Sou o cara que empresta livro que nunca volta, cuida do cachorro da vizinha porque “você tem uma energia boa, sabe?”. Não tenho medalhas, mas sou útil. E, no fim do mundo, alguém vai precisar de mim mais do que do gerente do banco.

Não uso terno, mas sei dobrar lençol de elástico. Não tenho casa própria, mas sei preparar miojo em sete estilos. Não entendo de investimentos, mas guardo moedas em potes de vidro com etiquetas.

E, sim, sou contraditório. Sigo fiel à calculadora Casio e ao cupom do iFood que me dá R$ 10 de desconto.

Por isso, se um dia você tropeçar num fracassado funcional como eu, aquele que não chegou lá, saiba: ele talvez não tenha respostas, mas certamente terá café, conselhos, um pano de prato limpo e tempo para ouvir.

E, nos tempos de hoje, isso vale mais do que um Volvo.

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

Rascunho