Houve um tempo em que certas literaturas pareciam destinadas a escorrer pelas frestas do cânone. Clássicos do estranho, do insólito e do marginal eram lidos sob a luz baixa das livrarias ou resgatados por leitores obstinados, como quem caça relíquias em feiras de alfarrabistas.
Em Portugal, entre 1970 e 1991, a Editorial Estampa compreendeu esse apelo e lançou a coleção Livro B, um pequeno fenômeno editorial com sua icônica capa preta, letras prateadas e papel azul. Era o lado B da literatura, reunindo surrealistas, decadentistas, simbolistas e mestres do fantástico, como Edgar Allan Poe, Oscar Wilde, Mary Shelley, Boris Vian e H. P. Lovecraft. Uma coleção de culto antes mesmo de essa expressão ganhar força.
A Editorial Estampa surgiu no final de 1960 e o poeta Herberto Helder foi um de seus diretores literários. Atuou por quase cinco décadas e publicou cerca de 150 coleções e mais de dois mil títulos ao longo de sua existência.
Dos 55 volumes publicados pelo selo Livro B, tive a sorte de adquirir 20 de uma só vez, numa visita à livraria Paisagem, na avenida São Luiz, no centro de São Paulo. Tinha pouco mais de 20 anos, mas já possuía algum tirocínio literário.
O que fazia da Livro B um objeto de desejo não era apenas sua curadoria primorosa, mas também o fato de que suas traduções foram feitas por nomes que deixariam marcas na literatura portuguesa. José Saramago, por exemplo, verteu Os paraísos artificiais, de Charles Baudelaire, o décimo volume da coleção.
Quem já encontrou uma dessas obras em sebos reconhece que segurou mais do que um livro: era um convite a universos inesperados, uma porta para o maravilhoso, o grotesco e o poético — territórios que as prateleiras convencionais nem sempre abrigam.
Para chegar aos 38 tomos que hoje olho com orgulho em minha estante, fiz um verdadeiro trabalho de garimpeiro. Trouxe muitos de viagens a Portugal, adquiri outros em sebos online e alguns caíram em minhas mãos pelo mais puro acaso. Como bom exagerado, às vezes penso que só estou vivo para completar minha coleção. Ainda bem que ainda me faltam 17 obras.
Agora, imagine se a Livro B aportasse no Brasil, justamente num momento em que a literatura fantástica, o horror psicológico e o gótico contemporâneo voltam a incendiar o imaginário dos leitores. Do Brasil à Argentina, do México ao Chile, autores vêm resgatando essa tradição do enigmático e mesclando-a com vozes próprias e contextos locais. Um revival da coleção em terras brasileiras teria um novo sabor: o de um reencontro tardio, mas necessário, com uma biblioteca paralela que sempre mereceu mais leitores.
A boa notícia é que, depois de um hiato de quase três décadas, a editora E-Primatur retomou o selo em Portugal. O espírito da Livro B sobrevive e se expande. Se há um momento ideal para atravessar o Atlântico, a hora é agora.
Que venham novas edições de Villiers de L’Isle-Adam, Marcel Schwob, Carroll e tantos outros — desta vez, com o toque tropical de quem sempre soube que a literatura, para ser grande, não precisa ser previsível.
Que alguém acenda essa vela no altar dos editores destemidos. Há leitores à espera — e eles não querem saber do óbvio.