O desavisado

O estranho caso do sujeito que decidiu ficar trancafiado em casa na companhia de Tibúrcio, um cacto
Ilustração: Bruno Schier
04/10/2023

O nome Darlos não era a única coisa incomum sobre ele.

Morava em um pequeno sobrado no centro de São Paulo, onde passava a maior parte do dia assistindo a documentários sobre pinguins, plantas exóticas e colecionando tampinhas de garrafas. Até aí, para nossa era, nada de muito estranho.

Mas a vida de Darlos estava prestes a tomar um rumo inusitado. No dia 13 de março de 2020, ele acordou com uma ideia. Decidiu que, a partir dali, nunca mais sairia de casa. Seria o único habitante do mundo, o Último Homem, guardião solitário da humanidade.

Darlos resolveu estocar comida, água e livros, se preparando para sua nova vida de reclusão voluntária. Lacrou todas as janelas, trancou as portas com várias travas e iniciou uma existência de completo isolamento, sem contato com o mundo exterior.

Os dias se transformaram em semanas, as semanas em meses e Darlos estava feliz como nunca. Tinha todo o tempo do mundo para si e seu único companheiro era um cacto que ele batizou de Tibúrcio.

A maior parte das horas era preenchida com leituras, meditação e conversas animadas com Tibúrcio, que, para Darlos, possuía uma personalidade deveras instigante.

Um longo tempo se passou e certo dia Darlos acordou com uma vontade estranha. Avaliou que era hora de sair do seu isolamento autoimposto e explorar o mundo que acreditava ter abandonado. Como tudo teria ficado sem sua presença?

Destrancou as fechaduras e saiu do habitáculo. Mas, para sua surpresa, não havia ninguém nas ruas. As lojas estavam fechadas, as avenidas desertas e o silêncio era perturbador.

Darlos pensou que talvez fosse um feriado, ou algo assim. Caminhou por quarteirões inteiros, olhou para os edifícios vazios e sentiu um arrepio de preocupação. Será que algo terrível tivera lugar enquanto ele estava trancado em casa?

Finalmente, chegou a uma praça e lá viu uma enorme placa onde se lia: “Viva! Acabou o lockdown!”. Abaixo dela, uma multidão de pessoas celebrava.

O autoexilado estava perplexo. Não entendia o que estava acontecendo. Então, um popular se aproximou e explicou: “Você não sabia? Estamos em uma pandemia global de covid-19! Todos permanecemos trancados em casa por meses”.

Darlos ficou boquiaberto. Passara um ano inteiro se isolando do mundo, achando que estava sozinho, sem saber que todos faziam a mesma coisa. Não sabia se ria ou se chorava.

A multidão, como sempre ocorre, começou a ficar descontrolada. A euforia pelo fim do isolamento forçado, potencializada pelo consumo de álcool e outras substâncias, levou à depredação do patrimônio público ao redor da praça.

Em poucos minutos, chegaram as Forças Especiais. Veio logo a chuva de balas bean-bag. Só houve tempo de Darlos dar meia volta, correr, e voltar a se trancar no sobrado.

Hoje, ele vive de administrar a conta no Instagram do seu cacto. Com milhares de seguidores e até um contrato de publicidade com uma marca de fertilizantes, Tibúrcio é quem paga as contas da casa. Vida que segue.

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

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