O cronista no céu

No além, Verissimo descobre que até Deus inveja sua leveza de cronista; entre risos e relâmpagos, a eternidade vira literatura
Ilustração: José Lucas Queiroz
10/09/2025

Quando o cronista chega ao céu, é recebido por um anjo que parece mais porteiro de boate chique. Lista na mão, caneta na orelha, óculos escuros.

— Nome?

— Luis Fernando Verissimo.

— Escritor?

— Às vezes.

O anjo olha para cima, como se conferisse com alguém invisível.

— Deus pediu para o senhor subir direto.

Verissimo estranha. Será que o Velho leu minhas crônicas? Ou pior: será que não leu nenhuma e vai me pedir um resumo?

No escritório celestial, Deus está circunstancial, mas sem a pompa. Parece um burocrata de Brasília em fim de expediente, só que com auréola.

— Ah, finalmente! — diz Deus, abrindo os braços. — O cronista chegou!

— Pois é… não esperava tanta pressa.

Deus pede para ele se sentar e já começa:

— Eu adoro suas crônicas, Luis Fernando. Aquelas do Analista de Bagé, então… d-i-v-i-n-a-s!

— Mas, Senhor, aquilo não fui eu que inventei. O Analista me apareceu pronto, só tive que escrever.

— Claro, claro — responde Deus. — Igualzinho comigo quando inventei o ornitorrinco.

Fica um silêncio constrangedor. Verissimo coça a orelha. Deus serve um uísque.

— O Senhor bebe? — arrisca Verissimo.

— Só socialmente. E, na eternidade, tudo é social.

Tomam um gole.

— Mas sabe por que pedi sua presença? — continua Deus. — Eu sou bom de tragédia, de dilúvio, de Apocalipse. Mas a crônica leve, a ironia do cotidiano, isso Eu nunca consegui.

— Não é tão difícil assim, Senhor. É só olhar pro mundo e escrever sem pretensão.

— Fácil falar! — Deus se exalta. — Quando Eu escrevo, chamam de Bíblia. Todo mundo interpreta errado. Você escreve sobre uma berinjela e o pessoal chora de rir, reconhece a sogra. Eu falo “não matarás” e passam milênios discutindo as entrelinhas!

Verissimo segura o riso. Deus está realmente ressentido.

— Quer dizer que o Senhor é meu fã?

— Mais que fã — diz Deus, solene. — Eu queria ser um cronista como você.

Nesse momento, batem à porta. É São Pedro, com um laptop.

— Senhor, os novos mandamentos em formato de post.

— Agora não, Pedro! — rosna Deus. — Estou numa consultoria literária.

Verissimo começa a se levantar.

— Olhe, Senhor, fico honrado, mas não quero atrapalhar. E se for pra dar conselho, escreva curto, com sutileza. O resto o leitor faz sozinho.

— Curto, com sutileza — repete Deus, anotando num guardanapo.

Quando sai do escritório, Verissimo olha para trás e vê Deus tentando escrever alguma coisa. Daí se irrita, rasga o papel e joga fora. De repente, dá um trovão, cai um raio e a cesta de lixo começa a pegar fogo.

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

Rascunho