Quando o cronista chega ao céu, é recebido por um anjo que parece mais porteiro de boate chique. Lista na mão, caneta na orelha, óculos escuros.
— Nome?
— Luis Fernando Verissimo.
— Escritor?
— Às vezes.
O anjo olha para cima, como se conferisse com alguém invisível.
— Deus pediu para o senhor subir direto.
Verissimo estranha. Será que o Velho leu minhas crônicas? Ou pior: será que não leu nenhuma e vai me pedir um resumo?
No escritório celestial, Deus está circunstancial, mas sem a pompa. Parece um burocrata de Brasília em fim de expediente, só que com auréola.
— Ah, finalmente! — diz Deus, abrindo os braços. — O cronista chegou!
— Pois é… não esperava tanta pressa.
Deus pede para ele se sentar e já começa:
— Eu adoro suas crônicas, Luis Fernando. Aquelas do Analista de Bagé, então… d-i-v-i-n-a-s!
— Mas, Senhor, aquilo não fui eu que inventei. O Analista me apareceu pronto, só tive que escrever.
— Claro, claro — responde Deus. — Igualzinho comigo quando inventei o ornitorrinco.
Fica um silêncio constrangedor. Verissimo coça a orelha. Deus serve um uísque.
— O Senhor bebe? — arrisca Verissimo.
— Só socialmente. E, na eternidade, tudo é social.
Tomam um gole.
— Mas sabe por que pedi sua presença? — continua Deus. — Eu sou bom de tragédia, de dilúvio, de Apocalipse. Mas a crônica leve, a ironia do cotidiano, isso Eu nunca consegui.
— Não é tão difícil assim, Senhor. É só olhar pro mundo e escrever sem pretensão.
— Fácil falar! — Deus se exalta. — Quando Eu escrevo, chamam de Bíblia. Todo mundo interpreta errado. Você escreve sobre uma berinjela e o pessoal chora de rir, reconhece a sogra. Eu falo “não matarás” e passam milênios discutindo as entrelinhas!
Verissimo segura o riso. Deus está realmente ressentido.
— Quer dizer que o Senhor é meu fã?
— Mais que fã — diz Deus, solene. — Eu queria ser um cronista como você.
Nesse momento, batem à porta. É São Pedro, com um laptop.
— Senhor, os novos mandamentos em formato de post.
— Agora não, Pedro! — rosna Deus. — Estou numa consultoria literária.
Verissimo começa a se levantar.
— Olhe, Senhor, fico honrado, mas não quero atrapalhar. E se for pra dar conselho, escreva curto, com sutileza. O resto o leitor faz sozinho.
— Curto, com sutileza — repete Deus, anotando num guardanapo.
Quando sai do escritório, Verissimo olha para trás e vê Deus tentando escrever alguma coisa. Daí se irrita, rasga o papel e joga fora. De repente, dá um trovão, cai um raio e a cesta de lixo começa a pegar fogo.